Raya e o Último Dragão (2021) - Crítica
Caso você seja novo no blog, pode não saber, mas eu sou muito fã do Disney Animation Studios. Mas muito. Esqueça o conglomerado Disney, com ESPN, Marvel, Star Wars, falo das animações Disney. O tempo me tornou num crítico estudioso e apaixonado pela sétima arte. E entre os primeiros passos que me apresentaram a este mundo, estão os clássicos do estúdio, principalmente na era de sua Renascença, qual nasci. Tal apego que se renovou e se manteve forte até os dias de hoje. A nostalgia se tornou um refúgio seguro, e vez ou outra, como nos casos de Moana e, principalmente, Frozen, eu redescubro um sentimento de maravilhamento com tais obras, me transportando para um local mais tranquilo, mágico e pacífico.
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O tom otimista e fabular das obras, quanto mais em períodos de hoje, serve como um alento, um escapismo e, por que não, esperança? Até agora, está fórmula, em menor ou maior grau, sempre havia funcionado. Com Raya, ao final de seus créditos, me deparei com sentimentos mistos. Apesar de ser sólido e com muitos méritos, não me vi imerso ou preso em sua trama e personagens. A falta do ambiente do cinema, talvez? Ou ele simplesmente ser abaixo do nível recente do estúdio? Eu finalmente cresci distante do espírito Disney? Ou será que nossa realidade, e aqui o Brasil entra com destaque especial, finalmente atingiu um patamar em que se torna difícil manter qualquer positivismo e esperança de melhora? Estatísticos e profissionais responsáveis da área hão de dizer, no futuro, as consequências duradouras dos efeitos que os anos sob desgoverno Bolsonaro tiveram na população, mas conforme os dias passam, ele reforça ainda mais sua intolerância e ignorância, ninguém faz absolutamente nada sobre e pareça irreversível nos aproximarmos da terceira centena de milhar de mortos para o coronavírus, quando o resto do mundo tende a reduzir suas morbidades, arrefeço. Conjecturo, que o poço já esteja tão fundo, que não há dragão, mitologia ou mensagem que me faça conseguir criar identificação e afeição ao que Raya transmite.
Essa longa introdução, pois o discurso da película está diretamente alinhado com os tempos políticos que enfrentamos, sendo uma obra póstuma do mandato de extrema-direita de Trump, mas que não por seu fim deixa de conversar com esta época de sectarismo, ódio e violência antes de compreensão, empatia e sabedoria.
Raya inicia usando a ferramenta do in media res, ou seja, no meio da história, até nos apresentar, num lindo prólogo bastante autoral e abstrato, e depois de forma convencional, a história de Kumandra, uma região que engloba, culturalmente, o Sudeste Asiático, país até então nunca antes representados dentro da Disney (e quase nenhum produto vindo de Hollywood, na verdade), onde humanos e dragões conviviam em harmonia até que seres chamados Drunns, materializações gasosas e soturnas de sentimentos humanos negativos, começaram a atacar e transformar em pedra os seres vivos. A última aliança de Dragões usa seus poderes mágicos para os afastar, criando uma joia que enclausura seu poder. Misteriosamente, somente os humanos voltam ao normal após este sacrifício das criaturas aladas, e a partir de então, entram num conflito perene para se apossar da pedra que, dizem as superstições, traz riqueza para quem a possui. O líder da região de Coração (todas são nomeadas de acordo com partes de um dragão, qual idolatram), pai de Raya, reúne todas as tribos para buscar reunificar Kumandra, mas uma traição leva à ruptura da pedra em cinco partes e soltura dos Drunns, o que então leva o mundo novamente à ruína e desolação, dessa vez sem dragões para salvá-lo.
Eu me estendi nos detalhes, para deixar bem claro a dose de convicção política que há no subtexto do longa. Antagonizar características humanas malevolentes em indivíduos temíveis está na pura essência Disneyianica, mas se décadas passaram idealizando a busca por amor como destino final, desde a retomada dos eixos do estúdio, com Frozen, o desenvolvimento humano se expandiu e atualizou para espelhar melhor as mudanças socioeconômicas que enfrentamos no mundo. Assim, como Elsa e Moana, Raya sequer menciona um par romântico, muito mais centrada na jornada interna, ou então de salvadora, sem a necessidade do auxílio primordial de um homem - não há mais lugar para donzelas em perigo. Como diferenciar os medos de uma criança com um adulto, a dramaturgia se tornou muito mais complexa e maleável. Raya luta para tentar salvar seu pai, mas a dúvida persiste quanto ao resto dos humanos, afinal, fora seu egoísmo, beligerância e ignorância que resultaram na separação das tribos e posterior trevas pelos Drunns, que são, novamente, representações de seus demônios descontrolados e abundantes.
No meio desse choque de realismo, que em muito se assemelha com os indivíduos que caminham entre nós e elegem apoiadores ou praticantes de tortura, violência sexual, armamentos, anti-ciência e fundamentalismo, os dragões compõem o remanescente fantástico, porém desaparecidos por mais de 500 anos, deixando a terra livre para errarmos e a destruirmos. Os dragões, aqui inspirados no biotipo Naga, tal como a mitologia do longa, bebem na fonte asiática, e por lá, esses seres são vistos como divindades da sorte e benevolência, não monstros orgulhosos e vaidosos que servem de chefe final para um herói.
Por meio de suas esquemáticas narrativas, com sidekicks fofinhos, atrapalhados e engraçados que se juntam à protagonista durante a trama, criaturas feitas sob medida para vender pelúcias, mas também servientes à trama, a história de Raya almeja um bocado: referenciar o Sudeste Asiático (ainda que para isso misture muitas culturas diferentes), com estilos de luta, fenótipos e termos diretamente associados a países como as Filipinas e o Vietnã (ascendência da dubladora de Raya e dos roteiristas); fortalecer uma protagonista feminina; divertir e encantar de acordo com o esperado pela marca e, por último, mas não menos importante, dizer algo, relevante, contemporâneo e certeiro, sobre nossa realidade. E o filme não se sai mal em nenhuma delas, mas tampouco chega a ser memorável.
Pessoas mais aptas que eu se mostraram felizes com a representatividade inédita de Raya, mas não deixa de ser um reducionismo embolorar mais de 10 países e culturas diferentes numa só. Os conceitos mágicos e terrenos da película, imageticamente comentando, são hipnotizantes, e seria lindo poder ver o uso de água e os dragões em uma tela grande para experimentar mais idealmente os avanços e requintes técnicos do projeto. Porém, o tempo em tela dos dragões é reduzido, e justamente na tentativa de comentar muito, tanto para referenciar os países do loca, quanto para centralizar o debate político e humanitário exposto e que conduz toda a trama, se superficializa e apela para um humor escrachado figuras e momentos que mereciam mais atenção e aprofundamento emocional. Por colisão de efeitos, mesmo a personagem Raya é ofuscada pela falta de apoio de outros núcleos.
Consequentemente, o otimismo Disneyiano fica mal estruturado e, para alguém saturado e soterrado de desgraças neste país, é até ridículo aceitar o desfecho atingido sem imaginar que em poucas semanas ou meses, os humanos mais uma vez conseguirão desestabilizar tudo por motivos mesquinhos. Isso diz mais de mim como pessoa do que da obra? Talvez sim, mas ainda que se desconsidere, Raya entra numa massa de produção regular e algoritmizada da Disney, que tem feito uma carreira bastante sólida de produções bacanas, por vezes se sobressaindo aqui e ali, mas jamais num todo longevo. É uma amostragem previsível, mas que se distancia do inesquecível de seus melhores esforços, aqueles que transcendem gerações
Raya é, portanto, mais importante do que devidamente bom. E isso é bom, mas também ruim.
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