O Senhor dos Anéis: Os Anéis do Poder - Qual a Função de uma Adaptação?

O peso do tempo é o que carrega todo o drama e tragédia de seus povos. Seu legado, e também sua expectativa. É o tempo que deu ao legendário de Tolkien seu status, mas esse mesmo que lhe atribuiu décadas de interpretações equivocadas e direcionadas a uma ideologia subjetiva, a despeito do próprio autor negar certas associações - explicitamente racistas - à sua obra. Material para isso não falta - basta ler sua biografia e Cartas. 

É o peso do tempo, também, que fornece o tom de Os Anéis do Poder. O olhar carregado de uma Galadriel incapaz de relaxar, quase sempre engatilhada para uma hostilidade a quem negar seus pensamentos. E é a falta de experiência em vida, digamos assim, que fornece a mínima tranquilidade a povos mais imberbes. Isso não os impede, entretanto, de expor curiosidade. Um sinal, claro, de inteligência. E que acompanha mesmo o mais ingênuo e irrelevante dos povos, os pés-peludos. São temáticas extrínsecas do intuito do escritor, mas que se interligam com o verdadeiro mote de suas obras: a união para combater o mal. Acima do conservadorismo e analogias cristãs de sua obra, a universalidade, durabilidade e referência de seus escritos está na criatividade do mundo criado e também suas temáticas facilmente relacionáveis.

Pode ser clichê falar de amizade, de bem contra o mal, mas Tolkien está entre os grandes responsáveis por essa disseminação popular do fantástico para além de uma literatura inferior, e por si só, suas temáticas (como a jornada do herói). Da mesma forma que sua adaptação ao cinema, por Peter Jackson, teve grande pioneirismo em sua respectiva mídia. Como se manter, então, relevante após tantas décadas, quando os esquemas inaugurados por você já foram replicados, revisitados e desconstruídos interminavelmente a um ponto em que o criador se torna o clichê? É só ver como o sucesso de Game of Thrones está numa distinção bem clara em retratar a alta fantasia, no que o próprio autor expressou "estava na hora da fantasia crescer", como se o mundo de Tolkien fosse relegado ao "infanto-juvenil". Numa era de cinismo e niilismo, não deixa de ser um desafio retratar uma obra com símbolos religiosos tão intricados e fazê-los atrativos a novas gerações. 

Pois, naturalmente, o globo não para. E para manter uma obra relevante, tal qual aconteceu com quaisquer escritores clássicos (Shakespeare, Jane Austen, Dickens, Kafka, entre outros), readaptações são necessárias, afinal, para reverter certos preceitos temporais, naturalmente sem perder a essência. O próprio Tolkien defendeu isso em sua biografia, ao demonstrar desejo de histórias passadas em seu universo, pela visão de outras culturas. O mesmo, vale lembrar, negou veementemente qualquer associação de sua Terra-Média com a Europa nórdica e as analogias referidas a ela, costumeiramente sequestradas para defender ideais eugenistas. 

E este é uma introdução com tamanho preâmbulo justamente por uma discussão que se tornou, insuportavelmente, constante ao se comentar a série: o racismo que acompanha, desde o início, suas repercussões. Uma falta de embasamento crítico em suas represálias, exibindo uma falta de conhecimento teórico sobre a miscelânea de Tolkien, expondo gritantemente um preconceito latente e motivado, incapaz de sequer considerar assistir a série para uma avaliação coerente. Pois afinal, um elfo negro corrompe completamente a natureza de Tolkien, rs. 

E afinal, qual o dever de uma adaptação? Manter uma obra relevante em seu imaginário, tal qual os filmes de Jackson, fazendo as alterações necessárias para sua época e mídia (audiovisual não é livro), mas mantendo o espírito e trazendo mais público para o mundo de Tolkien. Somente uma mente tão pequena, afinal, para rejeitar ver algo que se gosta ganhando novos materiais, e com uma produção tão abastada. É válido lembrar, também, que Tolkien deixou poucas narrativas anteriores completas ao período de Senhor dos Anéis e O Hobbit, e sim passagens de eventos e poucos detalhes acerca de diálogos e pormenores cotidianos, deixando necessário liberdades criativas a quem deseja explorar esse período. Sabe-se como começa, aonde vai e como termina. O que acontece entre tais passagens, não. 

Aos menos tacanhos e que somente se maravilham pela possibilidade de ver a riquíssima Terra-Média novamente em tela (e se der errado, os livros seguem lá, incólumes), Os Anéis do Poder surge como uma oportunidade única e de marejar os olhos, em uma era tão longeva e imersa em personagens históricos e eventos definidores e intensos. 

Em questão espiritual, a série é imediata e certeira em abocanhar o espectador numa narrativa grandiosa, acompanhada por um imaginário que faz jus ao mundo idealizado, com uma trilha sonora poderosa e muito transcendental que expressa bastante a divindade, mas também periculosidade fatal da era. Beleza e morte andando juntos. Como espécie de prólogo, Galadriel é rapidamente situada no papel protagonista, assim como Sauron como vilão final, ainda que ausente em tela, mas com uma presença sempre sentida. Superada essa passagem de localização, a série faz algo parecido que O Senhor dos Anéis, que é segmentar sua narrativa em núcleos, de acordo com seus povos, um recurso narrativo clássico. Temos os elfos, os humanos, os anões e os pés-peludos, além de mesclas esporádicas entre essas raças - o que por si só conversa com a temática do escritor, algo permeado por toda sua coletânea. 

Com um orçamento basicamente infinito e, como supracitado, bastante espaço para preencher acontecimentos e características, a série carrega o dever e vistoria do Tolkien State de permanecer fiel a Tolkien. O dinheiro é visualmente justificado e brevemente ilustrado em visões de Valinor, Lindon e Khazad-dûm, além do design de produção e figurinos impecáveis e infelizmente até sabotados pela televisão. J.A. Bayona, diretor destes episódios, configura os capítulos com uma textura grandiosa e épica que pede o cinema, mas entende a linguagem menor da TV e oferece mais planos fechados e closes que destacam a atuação acima do ambiente. É uma escala que por vezes frustra o mais fissurado pelas cidades e reinos que esperamos ver, mas explicada, ao menos em partes, pelo formato da série. 

O respeito a Tolkien, aliás, é onipresente nos diálogos e símbolos cristãos da obra, como o véu que revela o "portal" para Valinor, visto como uma elevação espiritual, além da própria introdução, que através de falas da Galadriel, conversa tanto com os filmes de Jackson, quanto com as inspirações de Tolkien e suas visões de mal x bem: "nada é mal no começo". 

Já entre as principais liberdades da série, fica uma indagação acerca da dupla entre Galadriel e um humano (o que por si só pode vir a oferecer explicações para o respeito de Galadriel a outras espécies, que vemos em LOTR, ao contrário da versão ainda imatura que temos da personagem aqui, mas não deixa de causar estranhamento uma certa tensão sexual entre ambos, aí sim inexplicável por tantos motivos, além de que neste período ela já forma um casal com Celeborn, ainda ausente na série). Com uma carga cronológica a histórica tão densa e complexa, assim como restrições bastante limitantes do que é permitido representar, os episódios iniciais se comprometem em uma longa introdução, somente sugerindo a trama e oferecendo os supracitados núcleos e suas dinâmicas, no que é também o maior obstáculo da série até aqui. Tanto a química difusa entre eles - Elrond e Durin funcionam, Arondir parece promissor; Galadriel e o humano, pelos menos por enquanto, não - assim como o interesse das respectivas plots e seu ritmo. Mas claro, são somente dois episódios de uma trama que deve se concluir ou ao menos se expandir e muito até o final da temporada. 

Isso considerando também quais os planos da Amazon em questão de temporadas e aquisições futuras do legendário. História plena existe, mas justamente por suas limitações do que poder mostrar, ficam dúvidas acerca do quão detalhados serão os arcos, com o perigo de cair na monotonia e arrasto para extrair alguma história de onde não há. 

O principal destaque da série, até aqui, fica justamente na união entre a beleza de seu mundo e o opulente orçamento que permite a exploração e idealização deste, assim como seus personagens. O dever da série é ir além do visual, por mais mágico que ele seja, e oferecer uma narrativa de apelo, que seja ao mesmo tempo representativa sem perder a essência de Tolkien, disseminando ainda mais seu magnífico trabalho, e para todos. A majestade da cultura pop não deve jamais ser refém do preconceito travestido de puritanismo. Numa era de extremos, o entretenimento tem mais responsabilidade do que se imagina em combater tais ideologias, e tenho certeza de que Tolkien concordaria com o que os criadores da série almejam. 

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