O Senhor dos Anéis: Os Anéis de Poder - Crítica da 1ª Temporada



Talvez nenhuma série tenha gerado tanto Hype quanto Anéis de Poder em seu pré-lançamento. O legendário de Tolkien permeia a cultura pop com um legado que transcende os inteirados de fato em sua obra. Com o auxílio dos filmes de Jackson, se torna sem precedentes a áurea da obra no imaginário popular. Não somente o do épico, mas o tom quase divino e inalcançável de sua complexidade e grandiosidade, ambas pioneiras. A fantasia levado a sério, acima daquele tom juvenil que muitos a associam. Tanto na literatura quanto no cinema. Isso por si só seria suficiente para atrair atenção. A alcunha de série mais cara de todos os tempos, oferecendo um orçamento inigualável para a produção deste vasto universo, é quase um milagre. 

Mas nem só de coisas boas viveu a expectativa. Foi começarem a sair notas de elenco e divulgação, que podemos alterar a frase que inicia este texto. Talvez nenhuma série tenha sofrido tanto hate quanto Anéis de Poder. E aí não nos atemos somente ao pré-lançamento. Estimulados por bots em manada, tão numerosos quanto qualquer exército Gondoriano, seguiu-se o padrão de ataques preconceituosos munidos por máquinas russas e em todos os idiomas feito contra qualquer obra dita como progressista, algo especialmente notório no lendário 8º episódio de Star Wars. Infelizmente, são fenômenos incontidos no ambiente tóxico das redes sociais, visto a alteração de agenda que a Disney provocou na saga das estrelas, uma escolha social e narrativamente catastrófica. O gatilho? A mínima representatividade racial através de, precisamente, um elfo e uma anã negros, além da Galadriel guerreira. Não que isso justifique algo, mas se torna ainda mais ridículo perante o fato de que nenhuma dessas presenças é devidamente quebra de cânone, assim como ao menos uma delas, a Galadriel guerreira, é algo apresentado pelo próprio Tolkien. Fica evidente, por si só, o preconceito explícito e nada velado, debilmente disfarçado por um puritanismo incongruente e ilógico com o legendário Tolkieniano. 

As comparações com a trilogia de Jackson ficam ainda mais irracionais quando lembramos as tantas alterações que o diretor e sua equipe fizeram nos escritos de Tolkien, algumas pequenas, como o cabelo de Legolas, e outras enormes, como o olho de Sauron. É bastante evidente que a trilogia somente se beneficiou do tempo em que foi lançada, especialmente pela ausência das redes para afetar e expor toda sua produção. Não é difícil imaginar o hate que um ator homossexual interpretando Gandalf sofreria, assim como certos atores de físico franzino em papéis "viris". O próprio herdeiro-mor de J.R.R., Christopher, sempre foi enfático em sua desaprovação com os longas.

Mas este não é um post sobre as polêmicas da série e tampouco os perigos da ideologia da extrema-direita, pois Anéis de Poder é mais do que isso, merece mais do que isso, assim como o espectador, fãs ou não. E também, já falei mais sobre tais aspectos anteriormente

É um povo incoerente, ignorante e, acima de tudo, infeliz. Incapaz de sequer tentar apreciar um trabalho que busca expressar visualmente um universo que dizem amar, se bem que isso é deveras questionável, visto a tremenda falta de conhecimento e compreensão semiótica das histórias de Tolkien, seus símbolos e temáticas. E isto jamais inibe a série, narrativamente, de seus defeitos. Pois é fácil, para ambos os lados, traçar suas características. Digo, os defeitos e qualidades, pois também, consciência social não sobrepõe o roteiro ou a direção. 

Um aspecto traiçoeiro está nos direitos adquiridos pela Amazon, que consistem no que já fora adaptado em tela - O Hobbit e O Senhor dos Anéis -, mas com o ás de seus apêndices, que transmitem muita informação, de todas as eras, mas com quase nenhum detalhe, quase como um resumo breve de livro. E na verdade, mesmo se na posse de O Silmarillion, Contos Inacabados e outros trabalhos, grande parte do material de Tolkien são anotações dispersas e flexíveis sobre Arda, suas épocas e povos. Compilados por seu filho e editores, mas muito raramente terminados numa versão final e pronta.

Com a necessidade de preencher as lacunas destes acontecimentos com personagens, diálogos e situações que as conectem e gerem, da mesma forma, experiências micros interessantes além das macros, os showrunners encontram seu maior desafio. E daí surgem seus triunfos, mas também os grandes tropeços. 

Para dividir a atenção do público e desenvolver tantas arestas, abrangendo toda a extensão territorial que possui, ligar os pontos com o futuro e expandir nossa experiência com este mundo, a escolha é tradicional, assim como visto nos filmes de Jackson: a divisão de núcleos, que em partes, vão convergindo para um ápice momentâneo. E disto temos momentos bons, mas também os fracos. 

Há pouca justificativa individual para os pés-peludos em meio ao clima da Terra-média, com participações que por muito soaram até interruptivas a arcos maiores. A presença do Estranho, da mesma maneira, se deveu mais a uma busca por engajamento longevo de curiosidade do que interesse genuíno criado pelo roteiro e direção. Mas mesmo este núcleo, provavelmente seu mais frágil, muitas vezes foi o coração e leveza de uma série marcada pelo crescer das trevas, aliviando um clima de progressiva tristeza e ruína, precedidos por ações que vão do egoísmo à tirania. E ao fim da primeira temporada, se preserva, ao menos, a sensação de evolução, assim como um rosto querido e amigo em Nori, interligando então com o futuro que vemos nos Hobbits, e que certamente germinará para o que virá a ser o Condado. 

O que o desloca é a desconexão, ao menos momentânea, com o restante da trama, fora a temática e percepção do mal. O cerne de tudo, o mais próximo que temos de uma protagonista, está na Galadriel de Morfydd Clark, que surge cheia de revolta, ira e impaciência, ainda muitos milênios, uns 5, antes da dama formada que vemos em O Senhor dos Anéis. A versão que temos aqui pouco sente fora rancor e ansiedade por justiça, que por vezes a aproximam daquilo que busca combater, e nada mais explícito que o diálogo de ódio com Adar. Algo que, novamente, faz ligação com O Senhor dos Anéis, expandindo agora a compreensão daquela perturbadora cena de Galadriel com Frodo. Ela é, acima de tudo, um reflexo do fardo acumulado de uma vida quase toda preenchida pelo luto da perda e da morte. A imortalidade como uma maldição. A armadura lhe cai melhor do que os vestidos élficos, e a estadia nos seus reinos idílicos é transitória entre as batalhas. Ela é uma personagem em formação. 

Ver Galadriel é acompanhar um arco de personagem já finalizado, mas ter o prazer de saber exatamente as razões que a levaram a tal caminho - e terá a série a oportunidade de revelar mais do questionável passado? Em meio a isso, é ela quem nos leva a Númenor e às Terras do Sul, ou Mordor, no que talvez seja o mais impactante episódio da série - e neste aspecto, até melhorando as informações que temos nos livros. 

Aos fãs do legendário que se permitem a isso, a série surge como um grande passeio lindo e criativo nas palavras já detalhadas e visuais de Tolkien. A grandiosidade de Númenor, esplendorosa e em seu auge, o que só fora antes arranhado com a decadente a decrépita Gondor. Ou as nababescas Lindon e Eregion. O escopo de série para a tv, no entanto, por vezes trai essa grandiosidade, enfocando closes que escondem muito da ambientação, uma textura perdida e sentida após a saída de J.A. Bayona, experiente diretor encarregado dos primeiros dois episódios, tão importantes para estabelecer o interesse e tom da série. 

O caminho, porém, é sempre traiçoeiro, e não deixa de pressionar e deixar dúvidas sobre certas decisões dramáticas. Abraçar o espírito de Tolkien já é adotar um mundo nostálgico e passado, mesmo que atualizando certas discussões, mas nada soa mais obsoleto do que focar em tensões de mistério sobre a natureza de tal personagem, um artifício que eu chamaria de preguiçoso para manter atenção. O Estranho e Halbrand, talvez, fossem beneficiados com um desenvolvimento maior se menos centrados nesta dúvida em si. A escolha de fugir do aguardado Annatar, inclusive, vem como um convite gratuito de hate para os mais conservadores em relação ao cânone. Na contramão, talvez vê-la sem o peso da dúvida traga mais virtude para a experiência, em retrospectiva, já que como recurso de efeito, ela é indolente de tão previsível. 

A decisão mais controversa, provavelmente, é o tempo condensado em quase 2 mil anos para posicionar concomitantemente a queda de Númenor com a confecção dos anéis de poder que dão o título da série e afetaram tudo o que a de vir na Terra-Média, culminando na Sociedade do Anel. Superada a estranheza de vermos Elendil e Celebrimbor no mesmo espaço cronológico, no entanto, para uma série que por muito abraçou a contemplação e o ritmo cadenciado e calmo de Tolkien, o traduzindo bem para o audiovisual, algo corajoso em nossos tempos hiperativos, fica frustrante ver a velocidade com que os anéis élficos são feitos, assim como a abrupta conclusão do arco de Halbrand. Após cozinhar por 7 episódios a revelação, o momento de descoberta e suas consequências imediatas são mostradas quase que com constrangimento do próprio recurso, algo contraditório perante a importância dada ao fato. A série parece ter pouco comprometimento também com certos personagens, primordialmente os criados para a série, Arondir e Adar, que se mostraram tão fascinantes, o segundo talvez o mais complexo da temporada, para serem descartados nos capítulos finais do show. O peso da falta de cânone explica isso quando nos vemos diante de passagens maiores dos livros, mas que por si só desvaloriza sua mitologia. 

Como supracitado, são estes momentos macro de algo já estabelecido e que a série menos deveria ter problemas para adaptar - estes seriam os micro que acontecem entre os eventos maiores. Fica inexplicável os mostrar como algo tão banal e facilitado, subestimando o espectador e os próprios personagens. 

Mas o saldo não deixa de ser positivo. A série soube lidar com temas de Tolkien, como fé, amizade, bem e mal como escolhas. Foi fiel a seu espírito e buscou o diálogo com novas gerações sem desprezar o fandom disposto e civilizado. A quem se permite, tem em frente o mundo mais incrível já criado na ficção, e ver uma produção de alto nível ilustrando isso é sempre uma experiência única. E para quem não consegue ultrapassar essa barreira, sem problema. Os livros seguem lá, incólumes. 

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