Coringa; A Origem do Mal - Crítica


Arthur Fleck é um sujeito deprimido, ansioso, solitário, inseguro, frustrado e basicamente qualquer outra característica similar. Para piorar sua situação, apresenta uma condição neurológica que o faz rir descontroladamente em situações de nervosismo, o que certamente assusta e irrita pessoas ao seu redor, visto que devido sua natureza, o riso só surge em contextos nada apropriados.

Com uma postura recurvada e musculatura surrada (um trabalho fisicamente brilhante de Joaquin Phoenix, assim como o sensorial/técnico), Arthur carrega no corpo a vida infeliz que leva e muito pouca perspectiva de futuro, por mais que tente seguir em frente, nutrindo o sonho de se tornar um comediante, inspirado em Murray Franklin (De Niro).

O fato de acompanharmos este sujeito, em seu apartamento roto e acinzentado, morando com a mãe envelhecida e esquizofrênica, numa vizinhança empobrecida e abandonada, destinado à decomposição silenciosa, torna Coringa um filme tristíssimo, uma origem condizente e atormentada do Palhaço do Crime, talvez o maior ícone vilanesco de toda a cultura Pop, e muito diferente do sujeito megalomaníaco e fascinante que vimos anteriormente, nas interpretações de Jack Nicholson, Jared Leto e, principalmente, Heath Ledger.


Este Coringa perturba e causa uma sensação de imundície e desespero. Cada minuto em sua companhia parece nos deixar claustrofóbicos e sem esperança. O quão horrível é sua existência. Sua fragilidade e impotência perante a vida causam, entretanto, empatia genuína, e até certo momento, inclusive sem culpa, por mais que obviamente saibamos o iminente destino de Fleck. Ele é vítima, sim, de uma sociedade completamente desigual e cruel, desassistido pelo governo em uma Gotham City espelhada na Nova York esquálida e entorpecida dos anos oitenta, a mesma vista em Taxi Driver.

A derrocada de Fleck, por exemplo, por mais instável que seja, não começa num surto deliberado, mas após agressões de jovens ricos e brancos, em um período qual a assistência social e psicológica que o atendia é descontinuada por um governo que, em crise, inicia os cortes em programas sociais que afetam, naturalmente, as camadas mais baixas da comunidade. É possível compreender a revolta interna de Arthur, que se vê invisível, até por ser, enquanto todos choram a morte dos agressores e bárbaros que o perseguiram, acostumados a passar impunes por atos semelhantes.

Assim, sem medicamentos e acompanhamento mental, que por mais ineficazes que fossem, ainda o mantinham em estado de racionalidade, Arthur descamba a um estado de paranoia e ilusionismo, num escapismo mental em que se esconde da própria miséria para encontrar um sentido torno em sua existência e atos, adotando, de vez, o Niilismo que também marcava o Joker de Ledger, porém em estado mais juvenil. É interessante notar como seu mundinho cinza e fechado só ganha cores e uma suposta energia justamente após este abandono da elite e governo da cidade, estado que aumenta conforme sua autoconfiança substitui mais e mais qualquer reminiscência consciente, no que representa a transição entre o deprimido e desprezado Arthur Fleck, ao célebre anarquista que é o Coringa. A história de Arthur é, assim, uma narrativa Rousseauniana.


Até pelo modo que se dá esta passagem, o Coringa surge em uma jogada ágil e inteligente como consequência de uma sociedade moralmente pobre e egoísta, reféns de um governo elitista e uma burguesa fria e mesquinha, cujo candidato a prefeito, em seu terno caro e postura arrogante, não exita em chamar os mais desafortunados de palhaços e lixo, ainda se dando ao direito de autonomear-se como única esperança destes.

Não há, portanto, nenhuma apologia à violência ou glamourização da cultura Incel, pois o Coringa não culpa nenhuma minoria por seus problemas, e sim a elite local, composta majoritariamente por homens brancos. E é claro que isto não torna suas ações nobres, mas servem como um triste atestado de que nossos piores exemplares são nada além de produtos de nossa própria sociedade, discriminatória, marginalizada e decadente. O longa, assim como outras obras focadas em anti-heróis brutais ou até psicopatas, como Breaking Bad, Sopranos, Taxi Driver e O Justiceiro, atesta e aponta em nossa cara, a própria hipocrisia de simpatizar e torcer para indivíduos claramente disfuncionais. O fato de personagens como estes servirem de símbolos e líderes de movimentos reais dizem mais sobre as pessoas do que as obras em si, e inclusive refletem seus seguidores na ficção, como as revoltas iniciadas no incêndio criado pelo Coringa.

Portanto, Coringa é, mesmo que não tão genial quanto pareça ou queira ser, com longas e pausadas cenas que buscam um poetismo por vezes sem sentido, e com passagens expositivas e desnecessárias, além de prejudiciais e distrativas referências ao Batman que não possuem função fora sugerir sequências e brincar, sem nenhuma discrição, como o morcegão existe e estamos no mesmo mundo, por mais "cult" que este pareça, um projeto ambicioso, corajoso e muito bem feito que refresca e mostra novos potenciais num gênero fadigado pela mesmice da Marvel, num período em que mais e mais pessoas buscam novas alternativas para adaptações de quadrinhos. Assim, a DC abocanha não somente quem procura mais do que a previsibilidade colorida dos Vingadores, mas inclusive um público sem interesse no universo dos heróis convencionais.


É inevitável pensar o que um diretor e roteirista mais maduro e perspicaz que Todd Phillips (cujo principal trabalho agora é boicotar as chances de seu próprio filme na temporada de premiações) poderia fazer num argumento tão complexo e político quanto o oferecido neste Coringa. Porém, não deixa de ser uma obra inquietante e certamente polêmica, cheia de virtudes, que cutuca muitas feridas. Um caminho inesperado para um nicho que clama inovações.

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