O Aviador (2004) - Crítica

Nenhuma biografia de Howard Hughes poderia ser minimamente fiel sem ser grandiosa. O playboy Texano teve uma vida regada a adrenalina, privilégios, amantes e muita repercussão, mas também tragédias. No começo do longa, o jovem Hughes diz a sua mãe: "Vou voar, fazer filmes e ser o homem mais rico do mundo", enquanto pequenos de sua idade, mesmo os mais abastados, talvez sonhassem, naquela época, em ser advogados, médicos, no máximo astros de Hollywood. O desejo de Hughes, afinal, não era específico por uma única paixão, e sim por uma precoce obsessão pela eternidade.

Scorsese faz jus a isto em sua película mais cara até então, ultrapassando os 100 milhões de orçamento, algo considerável para um diretor "de arte", famoso, mas distante da popularidade global. DiCaprio, o maior astro de sua geração e que carrega o glamour teen do Jack de Titanic, personifica bem a figura midiática e nada discreta de Hughes. Os cenários são tão opulentes quanto os sonhos do aviador e cineasta, ressaltados frequentemente por ângulos zenitais para dimensionar que o protagonista é alguém notável. Porém, Scorsese não se interessaria por um banal riquinho mimado, e Howard carrega uma complexidade maior do que a mera persona de um Gatsby rebelde, e a trajetória de vida da celebridade, sua ascensão e queda, espelham a própria jornada do cineasta, oferecendo assim uma pleroma de significados para a vida de Hughes, em diversas camadas: seja um retrato da hostilidade provocada por uma doença mental negligenciada; um estudo psicológico sobre a decadência do homem e, por que não, uma própria homenagem ao cinema?!

Diretores consagrados e apaixonados pela sétima arte, como Tarantino e Martin, sempre dispõem de uma aula de cinema em suas obras, pois elas são recheadas de referência históricas e uma infinidade de técnicas, mesmo que o contexto da trama não seja relacionada com Hollywood ou afins. É no subtexto que se encontra a mensagem. Em O Aviador, o brilhantismo do diretor converge tanto na retratação de um homem envolvido na indústria cinematográfica por período de sua vida, quanto no uso de seu repertório para desenvolver a narrativa, assim como para exibir um tributo à arte que o consagrou. 

Isso exibe um comportamento ilustre, mas também impositivo por parte do lendário diretor, que abrilhanta seus projetos por meio de um conhecimento ímpar e um controle absoluto pelas fases do que escolhe pôr sua energia. Scorsese não é um diretor submisso, mesmo que tenha de trabalhar para estúdios hoje em dia. E controle é a palavra certa pra interligar tanto o modo de trabalho seu, quanto o de Howard Hughes, cuja passagem em terra possui diversos períodos dentro de seu ciclo, mas encontra onipresença em sua busca maníaca por...comando. 

Scorsese não é alguém que se contenta em ilustrar o roteiro de sua figura central, por mais que o texto seja por si só um material fascinante. O diferencial de Scorsese está nos detalhes, e em O Aviador, talvez nenhum desponte, na composição da mise-en-scène, quanto a utilização de cores que compõem todos os elementos em tela, das roupas dos personagens, passando inclusive pelo filtro de filmagem. Levando em conta a escolha das décadas a se retratar na fita, o uso de cores é dividido em duas eras principais, encontrando transição em 1936. Até lá, o filtro é dominado pelo uso de vermelho e azul, como era o technicolor primitivo disponível pelos estúdios então. Depois, com o avanço tecnológico, as paletas que circundam Howard se tornam mais complexas e simbólicas, preenchendo o espaço e aderindo a misturas e novas significações conforme sua idade e deterioração mental evoluem. A semiótica, porém, está lá desde a primeira cena, quando o marrom e o amarelo queimado são assumidos como as cores principais de Howard. Dali em diante, outros tons saltam aos olhos de acordo com a necessidade do momento e a própria perspectiva do protagonista, mas é o marrom quem melhor sumariza a figura do aviador. 

Se até 1936, ainda bastante saudável e agitado, o azul patológico é mais tímido e fraco, apesar de sempre presente através da filtragem que banha toda a tela com tons sutis da coloração, é ao transformar-se no verde original que não somente temos a noção de avanço temporal, como da decadência subjetiva de Howard, simbolizado principalmente na cena do jantar em que acaba preso no banheiro, onde é enclausurado por paredes cor de musgo, e fica incapaz inclusive de abrir uma porta por fobia de germes. A cor volta a dominar o espaço quando em reunião com o Senador Ralph Owen, que o procura intimidar, e ao chegar para o tribunal com o mesmo político - e é fascinante como, ao assumir novamente o controle sobre suas rédeas mentais, ainda que momentaneamente, a câmera reduz a profundidade de campo e se fecha no rosto de DiCaprio, para mostrar como ele agora está centrado e sem ser afetado pelo ambiente. 

O clímax do debate entre Howard e Ralph, no entanto, é um dos poucos momentos em que Hughes demonstra total equilíbrio em toda a segunda parte da obra. Obcecado por controle, por mais que se demonstre por vezes polido e atencioso, é na mínima contradição e erro alheios que sua compulsão pela perfeição revela uma personalidade teimosa e que acelerará sua queda. O único sossego para Hughes está, normalmente, quando ele está cercado de vermelho. É no limiar entre a paixão e o perigo que ele encontra o amor. Isto é visto tanto na figura da Katharine Hepburn de Cate Blanchett, quanto quando sofre o acidente mais grave de sua vida, escapando cheio de sequelas para nunca mais ser o mesmo. Aquilo é tanto o gatilho e grande norte de sua vida, quanto a principal fonte da velocidade com que seu quadro nervoso se agrava. Os sinais mais fortes do sucumbir à doença, afinal, veem quando ele perde a principal fonte de vermelho em sua vida, Katharine, quando começa a perder o controle sobre o seu arredor, dando lugar a cada vez mais verde e azul (inclusive em seus olhos, progressivamente mais evidentes). E esta perda de interesse se deve muito ao incontrolável desejo por recordes e mais criações aeronáuticas, colocando de vez o entusiasmo pelo ramo à frente de qualquer outra coisa em sua vida, deixando de lado a atriz e o próprio cinema. Esta passagem se dá quando Hughes sobrepõe uma tela que exibe um filme por um esboço de um novo projeto de avião. Não há mais espaço para concorrência nem distração. 

O próprio cinema, aliás, pouco foi fora um mecanismo de Hughes expressar novamente sua necessidade doentia por autoridade e glamour. Bastante afeito à vida pública, por mais avesso que seja a conglomerações (quarentena é se mantra para se acalmar, veja bem, em tempos de coronavírus), cujo desconforto é acentuado pelo uso de uma montagem rítmica frenética em momentos de aflição, Hughes gosta de ser visto com celebridades e rapidamente rejeita a sugestão de se relacionar com uma empregada sua (o que iriam dizer?, ele comenta). Por algum tempo, porém, a impressão é de que Hughes é tão puramente egoísta e autocentrado, que a atenção midiática não lhe despertam interesse, assim como nenhuma outra pessoa conseguiu. Ele tem seus namoricos e lembranças, fagulhas de uma pessoa mais convencional que anseia por conforto. Mas em modo normal, não há espaço para ninguém entre ele e seus desejos. 

Nisto, não à toa que Hughes se tornou um ícone em seu país natal. Howard é o verdadeiro americano, o mito original; um homem tão perdido na própria arrogância e nos devaneios de grandiosidade, cego por suas paixões e certo da superioridade individual, que não resta nada a não ser terminal recluso e sozinho. Seu legado acaba sendo essa síntese da figura hollywoodiana primordial e artificial, naturalmente cinematográfica. Até por isso, sua vida se encaixa tão bem na sétima arte. É como se tivesse existido para se tornar material de entretenimento. 

O caminho do futuro que ele escolheu, mesmo que inconscientemente. 

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