Análise de Euphoria

Uma rápida pesquisa pela internet por críticas de Euphoria revela, basicamente, um uníssono na necessidade de se condenar alguns excessos da série em ilustrar a cultura do uso de drogas, violência e nudez. As críticas negativas basicamente se focam nisso em seus parágrafos, enquanto que mesmo as majoritariamente positivas, apontam tais questões com contrariedade. Um ponto em comum entre todas elas, é que tendem a ser obras de adultos entre seus 30-45 anos, ou seja, nascidas entre o final da dita Geração X e início da Y, mas cujo ethos parece se mesclar mais ao conservadorismo da X.

São comentários de um público que parece não conseguir se conectar com a série, mas ao invés disso dizer mais sobre Euphoria, ou por alguma falta de adaptabilidade (ou sensacionalismo, apesar desse ser um aspecto consciente e justificado, como comentarei em frente) do show, dizem mais sobre o espectador contemporâneo, e aqui nem falamos somente do médio, mas do tido como especializado. O que essas análises e seus realizadores parecem atestar é um próprio estudo antropológico em relação à série, seu público-alvo e também o retratado em sua rotina, que a diferença cultural colossal existente entre a geração X e Y e aqueles da Z ou do final da Y (digamos 95 em diante, chegando até 2005), é a mais incontornável de todas. Isso pois catalogar determinados períodos de tempo que englobam uma década e meia claramente cria um dismorfismo de adequação dentro deste grupo. Alguém nascido em 96, por exemplo, claramente vai ter mais em comum com pessoas da classe 96-2000 que quem veio de 85-93. Usaremos como público-alvo da série, então, pessoas entre seus 16-25 anos. 


Quando pegamos os dados estatísticos desse quadro-social, a emergência mais radical em relação a gerações passadas, é a presença crescente de problemas psicológicos precoces, e naturalmente suas consequências, como o suicídio, frequentemente associados ao uso de drogas e exposição uterina à tecnologia, midiaticamente tidos como "provetas de delinquentes". 

A dinâmica entre esses escritores e a classe representada em tela, numa autoironia que é, tenho certeza, deliberada, está na própria relação entre os os estudantes que protagonizam a série com seus pais, que, com exceções, não são pessoas ruins, mas incapazes de entender sua prole, aí gerando mais divergências e isolamento neste gap, assim como a culpa de desapontamento. São pais que não entendem os filhos, que por sua vez acabam inserindo esta temática em mais uma gigantesca equação sem resposta, que se acumula e cria vazão numa autodestruição variada, aí de acordo com a "vítima". São a geração mais exigida e condenada de todas, sem recompensas, respostas e compreensão, até um ponto de imparável consternação e indiferença. 

É engraçado, então, que Sam Levinson, criador da série, ele próprio parte da geração acima, com 37 anos, pareça tão conectado com as novas mazelas que enfrentam essa brutal transição ao mundo adulto da geração mais sem perspectiva da história. O que por muitas vezes parece, justamente, uma visão de "tiozão" de como funciona a juventude atual, como se fosse feita uma série sobre matérias de jornais evangélicos dos males que cruzam os corredores escolares e a perdição que os celulares trazem, nada mais é do que uma atualização da fetichização adolescente que a CW se referenciou nas últimas décadas. 

Porém, o que a CW não compreendeu, estagnada no tempo com seus jovens musculosos e lindos, coube a Levinson e a HBO, é que a faixa-etária retratada em Euphoria (com margem de erro até uns 26 anos, digamos) não quer mais se ver por uma idealização escapista utópica e melodramática, e sim numa expressão de representação crua, bruta e autopiedosa que ilustre as tendências autodestrutivas de uma geração marcada pela depressão, ansiedade e falta de esperança com o futuro. O grande lance do show, que muitos condenam como glamourização e normalização, é sua hiperestilização justamente como simbolismo do interior de uma idade em que a iminência apocalíptica parece acompanhar cada dia e decisão, amplificados pelo alcance do smartphone e do anonimato virtual. 

É um sensacionalismo estético e funcional que joga, obviamente, para o entretenimento, mas longe de se calcar no choque como efeito meramente arbitrário ao acompanhamento, e sim como punchline para uma miríade de escolhas. A cronologia do audiovisual serve como comentário temporal, e no auge das disputas por atenção entre tantas telas, enquanto muitos preferem reclamar de uma superficialidade robótica do consumo em massa para justificar fracassos comerciais, Levinson buscou as características do que mais frutifica nas graças das novas gerações: o uso de cores, uma montagem desenfreada e carente de estímulos incessantes em tela para cativar, e os integrou na narrativa da série como instrumentos práticos e semióticos, o que enriquece o material e o torna, de certa forma, revolucionário. Ao contrário, por exemplo, de filmes da Marvel e tiktoks, que apresentam os mesmos elementos meramente como diversão célere e distrativa, em Euphoria, isso é parte da própria mise-en-scène da obra. 


As cores refletem o humor do personagem retratado. A montagem rápida espelha o estado emocional ansioso e turbulento. Já o amálgama de conflitos é um fruto da própria natureza instável e insegura dos habitantes do universo de Euphoria, oriundos da adolescência e intensificados pelo zeitgeist das redes sociais, verdadeiros combustíveis de inveja e ódio, pratos cheios para uma dramatização que externamente pode parecer risonha, mas a quem a cria, uma verdadeira implosão que clama por um anestésico imediato. Se há pouca introspecção em tela, é porque há pouca na vida real; o tédio é substituído pelo feed do twitter; a tristeza, por identificação no reddit. 

O que esses críticos do show não alcançam, é que eles são os responsáveis por um sistema autofágico que mandou as novas gerações estudarem e darem tudo de si, para chegarem no final da trajetória sobrecarregados, infelizes e frustrados em rotinas sufocantes que esvaziam sonhos e nem ao menos pagam bem para isso, e depois de tudo isso ainda culpam e condenam os meios autodestrutivos que canalizam tanta negatividade como única escapatória desta condenação interna sem oferecer empatia e compreensão. É mais fácil, é claro, acusar o game violento ou o celular, mas não uma cultura carnicenta de consumo da violência como cotidiano, e da exploração banalizada por posts de otimismo tóxico e coaching barato disfarçados de meritocracia. A série não condena nem romantiza seus excessos, somente expressa e reconhece essa condição. 

Euphoria é sobre uma geração somente entendida por si mesma, atrás da compreensão de outras, que parecem, por vezes, reticentes em ouvir. 

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