Boiling Point (2021) - Crítica

O verdadeiro maravilhamento do cinema está em extrair poesia e entretenimento de qualquer conteúdo, ficcional ou real. Desde dinossauros e dragões, à simples arte de existir. A gastronomia, obviamente, não passa impune aos truques de montagem e artifícios narrativos para cativar através da sétima arte. E é incrível como podemos ver diferentes abordagens por uma temática similar; temos a contemplação naturalista da trilogia japonesa "Little Forest", a dramédia de Jon Fraveau, "Chef", ou a emocionante animação da Pixar, "Ratatouille". 

Adaptando seu próprio curta de 2018, um dos destaques de 2021 é um filme sobre cozinhas, e numa aproximação diferente de todas estas. Dirigido e escrito por Philip Barantini, o britânico Boiling Point, multi-indicado ao BAFTA 2022, é uma extração efervescente do poder do cinema em contar histórias e entrelaçá-las entre a própria estrutura e uma semiótica interna que também esbarra no presente contexto social.


Boiling Point é filmado - filmado, e não montado - em um plano-sequência de uma hora e meia que, mesmos os desavisados, logo compreenderão ser um recurso atmosférico além do próprio estilo. O longa abre com Stephen Graham, o chef de um restaurante local, se dirigindo atrasado ao trabalho em plena noite de natal, enquanto pede desculpas à mulher por perder algum evento do próprio filho. Ele anda, transpira, inspira e fala com ritmo irregular e um olhar transtornado. Algo não vai bem, e a climatização de ansiedade é imediata. As comparações com Uncut Gems, dos irmãos Safdies, são compreensíveis, apesar de sempre injustas por criarem uma rivalidade que possa vir a desmerecer um dos filmes, caso aqui em que ambos são eficientes em sua própria proposta, relacionados por uma dinâmica frenética. 

Barantini aproxima muito a "vibe" de sua obra de estreia em longas a um programa culinário televisivo, em que o sensacionalismo e os conflitos tornam o ambiente da cozinha turbulento e atraente ao espectador. De início, a sensação é a de que o Chef de Graham é somente mais um líder despótico que humilha e comanda seu time por intimidação, até ele mesmo ser engolido e naufragar na caótica noite e seus acontecimentos desenhados e simples que se expandem numa maré fruto de má-organização, falta de diálogo e, é claro, clientes babacas. 

O grande mérito de Barantini é economizar no texto e focar o filme no próprio ritmo; os diálogos afrontosos são, em sua maioria, de uma passivo-agressividade que antecede qualquer conhecimento de causa e consequência, oriundo da própria reação da pessoa que o ouve. O casting meramente visual, da "casca" do ator, é certeiro nisto, como num cliente carrancudo que logo revela um racismo implícito que envergonha a família, no entanto sem jamais enfrentar o patriarca, esboçando rapidamente toda a dinâmica familiar numa simples visita de garçom à mesa. Não é uma obra que busca desenvolver e humanizar, mas tampouco criar um jogo de arquétipos entre os funcionários e os clientes. A cozinha do restaurante é transformada num minicosmo, num ethos tal qual um documentário selvagem, operado como tal com um câmera de mão nervosa e trêmula que emula a combustão instável e crescentemente opressiva do ambiente, até um ponto que precisa-se lembrar de respirar. 


Cinema não é nem nunca foi sobre complexidade opulente em si, mas sobre a arte de tornar o complicado simples. Barantini surge com potencial em um longa objetivo e claustrofóbico que consegue fazer um desenho social e um experimento de linguagem ao mesmo tempo em que sufoca o público juntamente com seus personagens. É um domínio invejável de direção e dos elementos que compõem um filme, e portanto, um grande expoente do que faz esta nobre arte tão milagrosa. 

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