Doutor Estranho no Multiverso da Loucura (2022) - Crítica

Produções conturbadas não costumam gerar bons frutos. Não que Scott Derrickson seja o epítome da direção. Mas bem, se até o Scott Derrickson se mostrou insatisfeito, deixando a direção de um filme que o renderia muitos milhões e provavelmente algemas de ouro para criar carreira na Marvel, por "diferenças criativas", é de se imaginar a demanda alta de restrições impostas pela Marvel. Critérios estes que já afastaram outros cineastas, como Patty Jenkins e Edgar Wright. 

Multiverso da Loucura, aliás, basicamente uniu dois dos piores sintomas para um longa em produção: a perda de seu diretor e refilmagens. O filme, que inicialmente era planejado para sair antes de No Way Home e foi reposicionado cronologicamente para depois, certamente passou por mudanças bem radicais neste processo. Numa fase que se engatinha completamente refém de um multiverso cuja função até aqui é gerar o maior número de conveniências possíveis para trazer personagens novos, conhecidos ou não, o segundo filme do Doutor Estranho acaba sendo vítima por se tratar do primeiro filme pós a euforia do terceiro capítulo do teioso, que uniu os três aranhas do cinema e naturalmente gerou uma comoção enorme de "quem será o próximo?". Provavelmente estas expectativas que explicam as ditas refilmagens, assim como a saída de Derrickson, interessado em fazer um filme do Doutor Estranho, cujo protagonismo diluído se tornou piada antes de seu lançamento, mas agora se confirma, numa resolução que atesta muito do problema narrativo que a Marvel criou para si mesma, por mais lucrativo que ele seja, em curto prazo. 


O letárgico e fora de timing filme solo da Viúva Negra gerou muitas críticas por parte da demora da Marvel em organizar um protagonismo solo para a única vingadora original mulher. Como sempre interessado nas relações públicas com seu espectador, Feige parece ter aproveitado a chance para transformar Doutor Estranho 2 numa aventura indireta para a Feiticeira Escarlate, outra personagem presente no cânone da Marvel desde 2015, numa eterna promessa de plot que nunca chega, e que implicitamente resume bem a impressão geral de Multiverso da Loucura. 

Não que a perda de Scott, um diretor a contrato que parece tanto um nome aleatório gerado por uma inteligência artificial diretora quanto Jon Watts, pareça grande coisa quando quem assume a cadeira é Sam Raimi, diretor de forte assinatura visual e responsável pela trilogia original do Aranha, fortemente responsável pela popularização de adaptações de HQs como filmes sérios para a grande tela. A dúvida acabaria sendo o papel do diretor nisto tudo, visto que sua identidade é bem avessa ao que costuma ser permissivo na Marvel. 

O que Feige parece ter decidido, numa tentativa bem branda de agradar a todos sem sair exatamente do mesmo lugar, é uma sopa para responder todas essas críticas e desejos, que confere o protagonismo a uma mulher, mesmo sem tê-la no título, mas sugerindo em trailers e imagens promocionais; entope a produção de cameos que engatilham mais uma dezena de sequências, assim como abre espaço para exclamações de ousadia visual por permitir alguma liberdade a Raimi, especialmente no que confere à (falta de) censura, ou sangue. 

Não é em vão que o filme se promoveu, muito diretamente, no reino do softpower, como terror, gênero incluso em sua página no imdb. "Ah, a Marvel faz terror agora." É algo fácil de se imaginar rolando nos escritórios de Feige. Produtor do século e com ótima estratégia para ganhar dinheiro, ele, apesar disso, segue sendo o verdadeiro capitão do barco do MCU. E Doutor Estranho 2 é tão somente o novo sacrifício para o eterno projeto do estúdio.

É uma pena de ver os conceitos místicos de seus personagens, tão mais interessantes e cabíveis de exploração em comparação com o físico presente na formação original dos Vingadores, ser relegado a uma coadjuvância sem rumo. A perícia estética de Raimi pelo sombrio cartunesco e figuras grotestas diverte pontualmente, mas não distrai da fragilidade estrutural de um filme que parece uma grande brincadeira de "pega-pega" entre Wanda/Feiticeira Escarlate e Strange, que ainda arranja tempo para referenciar suas obras menores, como Wandavision e episódios de What If..., aumentando ainda mais a dependência multimídia de seu universo, que a cada capítulo que passa, se sustenta menos como filme em si.

É notório que as únicas reações extraídas do público de minha sessão, numa pré-estreia lotada que normalmente costuma ser um celeiro para histeria, tenha sido em participações especiais. Claro que, num cenário ideal, isso seria positivo, um atestado de que o filme prendeu a plateia. O que percebi - e ouvi -, entretanto, foi um silêncio a contragosto de quem não se empolga como esperava, de quem enfrenta a desilusão de frente. 

Se a culpa do fracasso de um filme, entretanto, costuma ser dirigida ao diretor, fica complicado relegar a Raimi uma acusação maior, ainda que o diretor pareça mais determinado a provar que é tão autoral que consegue conferir um pouco de sua assinatura mesmo no cenário mais improvável, e conseguir deixar a Feiticeira de Olsen caminhar quase metade da película com o rosto ensanguentado enquanto dilacera rivais é realmente uma grande prova disso. Raimi também se diverte com o Strange Zumbi, mas este, assim como qualquer variante do mago e todos os cameos, possui uma função bastante duvidosa e facilmente substituível, meramente ornamental dentro da obra. 

O longa, de fato, parece não saber muito o que fazer com Strange, e força um núcleo emocional com seu amor por Christine Palmer para conferir um peso dramático ao personagem, numa narrativa que só possui alguma densidade justamente fora da tela, a quem conferiu seu especial em "What If...?", além de impu-lo como coach espiritual barato de America Chavez, com diálogos expositivos terríveis e vexaminosos saindo da boca de Cumberbatch para tentar deixar certas situações e acontecimentos menos ridículos em tela. 

Como ciclo de personagem, o filme é mesmo todo de Wanda - mas novamente, sua compreensão acaba sendo obrigatoriamente interligada com Wandavision, rejeitando a sustentação do filme por si só. Surgida numa origem improvisada por questões contratuais entre Marvel e Fox, a figura da feiticeira escarlate sempre viveu num segundo plano, como que num on hold à espera da introdução dos X-Men, que lhe permitisse uma exploração mais verídica de seu potencial. A personagem finalmente ganha um cerne narrativo para chamar de seu, com argumentos que funcionam com mais poder para explicar seus atos, também auxiliado pela atuação feroz de Olsen, mas que tão rapidamente acaba numa conclusão rápida e desinteressada, sugerindo um destino mas também deixando abertas outras possibilidades, como que descartando a personagem para não ter de se preocupar com ela até segunda ordem. 

Nestes anos comandando a indústria, a Marvel se especializou em produções medíocres sob o álibi de que elas serviriam para algo maior, uma construção demorada e monótona, mas que em algum momento valeria a pena. Agora, mais do que nunca, Feige parece ter desistido oficialmente de realizar obras de cinema, e sim outdoors móveis e caros que panfletam rostos conhecidos e queridos, engatilhando a cada filme enfadonho outra dúzia, numa eterna promessa de algo grandioso, mas que funciona muito pouco fora do clima de histeria coletiva das sessões de pré-estreia, além de obrigar que se consuma suas séries e desenhos para uma "jornada completa". 

A Marvel se tornou como a espera pela estabilidade financeira da vida adulta para dar o próximo passo: ela nunca vem, mas na esperança, vai enganando pelo caminho e juntando o que consegue. Quando percebe, você já perdeu tempo demais no automático para abandonar o barco, mesmo sem aproveitar quase nada. 

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