Em Chamas (2018) - Crítica
Haruki Murakami é um best-seller mundial cujo mero nome já serve de baluarte para destacar suas obras no topo das listas de mais vendidos. Indubitavelmente o profissional mais conhecido da literatura japonesa e um dos autores com mais clamor pelo Nobel. Mesmo assim, com mais de cinquenta contos e livros publicados, são raríssimas as suas obras que conquistaram uma adaptação para a sétima arte.
Para qualquer um que conferiu algo de sua miscelânea, a razão maior é clara: o estilo que cativa milhões também é o responsável por suas histórias serem próximo do inadaptável - alcunha só não assumida por vermos como livros que eram considerados como tal receberam bons filmes, vide Aniquilação e Vício Inerente.
É apropriado que o aventureiro a arriscar transferir as mídias seja um cineasta tão idiossincrático e peculiar quanto Chang-dong Lee, cuja filmografia poderia muito bem ser rotulada como dificílima de se "novelizar". O estilo de ambos, um japonês e outro sul-coreano, difere em sutilezas, mas se encontra no estilo. O realismo fantástico abstrato de Haruki que originou, em 1992, no conto Burning Barns, serve de inspiração para que Chang use de sua delicadeza e transforme dez páginas num longa de 148 minutos. Em comum, o minimalismo das poucas palavras e muitos significados para retratar almas solitárias e misteriosas num mundo que, assim como suas obras, não oferece respostas, e sim uma ambiguidade que corrói o subjetivismo dos personagens.
A temática permite que se flutue do Japão, onde Murakami estabeleceu sua história, à Coreia do Sul de Chang, sem alterar a forma do produto, justamente pela universalização de seu conceito, já retratado em múltiplas etnias, que á uma sociedade perdida e sem perspectivas, como o americano Garden State, o Hongkonger Chungking Express e o japonês Tony Takitani.
A paralaxe oferecida por Chang, aqui, é não um estado psicológico qual se pode lutar ao encarar a causa, mas um originado da frustração opressiva da incapacidade de se desprender da mediocridade oferecida pela vida, em que a desigualdade social prende, grita e escancara, sempre que pode, a injustiça em que está inserido - neste caso, Jong-su (Ah-In Yoo), jovem que tenta, mas não consegue fugir de sua família fragmentada e o cotidiano de uma decrépita fazenda de periferia. Ele vê uma fagulha de esperança quando uma ex-colega o aborda impulsivamente, Hae-mi (Jong-seo Jeon), que esconde atrás do sorriso radiante o peso de quem também não vê saída do buraco em que se meteu - ou foi metida.
Numa destas tentativas de escapar da realidade é que ela vai ao Quênia, para vivenciar um ritual espiritual e tentar se livrar da maior fome de todas, a psíquica, deixando Jong-su para cuidar de seu gato - outro legado tradicional de Murakami -, que, no entanto, nunca aparece para o rapaz.
Nas semanas em que ela se ausenta, ele parece alimentar o célere contato que tiveram em uma paixão pulsante, e nas visitas a seu apartamento se masturba na lembrança do sexo que tiveram - a perda de virgindade ao jovem. No dia antes de sua chegada, recebe a ligação de Hae-mi, que lhe pede para esperá-la no aeroporto, aceito aos atropelos pela excitação. Ao avistá-la, exibe seu primeiro sorriso no filme, um dos últimos, para logo se converter numa expressão exasperada de confusão. Ela não está mais sozinha, não o abraça, beija nem dirige a palavra com empolgação, como somente apresenta um outro sujeito, Ben (Steven Yeun de The Walking Dead). A idealização de Jong-su se corrompe, com um elemento estranho poluindo seus sonhos. Mas ela parece feliz.
Nas semanas seguintes, Jong não consegue o que obviamente desejava: sair a sós com sua musa, como na verdade assume o papel de segura-vela para os encontros de ambos, em que a discrepância financeira entre ele e seu "rival" amoroso o transforma num titã inalcançável, uma figura silenciosa e distante. Ben dirige um Porsche, possui fonte de renda inexplicada e faz tudo que quer. É o Gatsby coreano, enquanto Jong passa seu dia cuidando de uma vaca tão solitária quanto ele mesmo, numa região que se aproxima mais da miséria norte-coreana que os requintes de Gangnam.
Uma tarde, quando suava no estábulo, recebe de Hae-mi a ligação de que ela e Ben estão indo a sua casa. A reação imediata é ir se arrumar desajeitadamente, em trajes que se pensa serem seus melhores, mas são desengonçadas, grandes demais, sem combinar. O carro luxuoso de Ben parece tão desadaptado ao ambiente quanto Jong nas festas caras com amigos opulentes do recém-conhecido.
No único momento em que se equivale a Ben, Jong diz que almeja se tornar um escritor, esforço que ele parece mais sonhar do que de fato tentar. Diz que William Faulkner é seu autor favorito, e Ben expõe que espera poder conversar mais com ele no futuro. Hae-mi estuda mímica e emula realizar ações. Ela e Jong dividem similaridades nítidas, ansiando o que não têm, e nisto Ben é o intruso, mas socialmente superior, os outros é que se submetem a ele, e na encruzilhada, a dama pende a quem lhe oferece mais no mundo capitalista contemporâneo.
Chang compõe a narrativa com a sabedoria e experiência que construiu por sua carreira, com simplicidade para deixar que a narrativa avance organicamente, sem sinais da intromissão fictícia de um diretor, mas com a beleza e crueza de um cotidiano palpável, compondo planos exuberantes no crepúsculo de uma Seoul primitiva com o diretor de fotografia Kyung-pyo Hong.
Na figura de pessoa criativa, Jong estuda para seus livros assistindo julgamentos abertos, com seus lábios entreabertos e olhos que parecem sempre oscilar em outros pensamentos, criando histórias. Como o ponto de vista da película é o seu, se torna sempre incerto se a verdade retratada é a honesta ou uma imposta por sua ambição. Os sentimentos que sente por Hae-mi são recíprocos? Ben é um ególatra que procura relações com mazelas para se divertir ou escapar do esnobismo elitista? Seu sorriso diverge entre o genuinamente bom e a ironia. Ou talvez isto também seja a impressão subjetiva de um espectador com sua própria construção social.
Mesmo com sua duração generosa, a história de Em Chamas nunca termina. O filme adota a existência de metáforas explicitamente, então o que é, talvez não de fato seja, e os fatos são simplesmente opiniões de ignorantes cheios de certezas.
Segundo Aristóteles, a arte imita a vida, como Hae-mi e sua mímica. Mas o que é, então, real, e o que apenas eu vejo?
Nota 9.
Saber que Murakami esta envolvido de alguma forma nesse filme só me deixa com ainda mais vontade de assisti-lo, mas sempre fico meio receoso em ver filmes novos, principalmente pelo fato de ser difíceis de achar, mas com o sua analise apenas sentir ainda mais vontade de assistir, adoro suas analise, pois você sempre trás ótimos filmes para mim assistir kkk
ResponderExcluirOpa, que bom que gostas das indicações que ponho aqui.
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