Doctor Who, BlacKkKlansman e a Legitimação do Ódio
Existe uma teoria de segurança pública muito bem fundamentada, posta satisfatoriamente em prática nos Estados Unidos, pelo cientista política James Q. Wilson e o psicólogo criminologista George Kelling: a teoria das janelas quebradas. O estudo defendia a correlação imperativa entre desordem e criminalidade, acima de outros fatores tipicamente citados, como pobreza e fatores étnicos.
No experimento, praticado no anos 80, dois carros foram deixados em áreas culturalmente distintas, à mercê do tempo: um, no Bronx, área violenta de Nova York; outro, na zona nobre e tranquila de Palo Alto, Califórnia.
Em poucas horas, o veículo estacionado no Bronx foi "desmembrado" e, quando nada mais restou de utilizável, destruído. Na contramão, o automóvel de Palo Alto atravessou dias incólume, à exceção da poeira acumulada. Os próprios pesquisadores, então, tomaram a iniciativa de quebrar uma janela do carro. Como consequência, desencadeou-se o mesmo processo visto no Bronx: esculhambação e vandalismo. De repente, estas áreas não eram mais tão diferentes assim.
Servindo de propósito antropológico e social, não há espaço para elucubração na conclusão do estudo: a deterioração e degradação de um ambiente transmite desleixo e ausência de ordem, um abandono que impregna os habitantes e dissemina a decadência moral, encorajando o aviltamento. Já um espaço preservado e bem regulamentado estimula a civilidade e o senso de comprometimento a manter o status quo de sucesso.
Como fora dito no primeiro parágrafo, é uma teoria bem fundamentada, pois seu corolário foi uma das bases para a reformulação da cidade de Nova York, que até o início dos anos noventa enfrentava grandes níveis de homicídios e assaltos, sendo taxada de modo pejorativo. Para se tornar a referência de desenvolvimento que é hoje e extinguir a imagem negativa, um radical processo de purificação, através da política de tolerância zero e extremo zelo pela conservação do bem estar das pessoas, foi tomado. Obviamente, com êxito.
Estudo este que pode plenamente ser adaptado na psicologia humana mais intimamente, não apenas em demonstrações físicas de depravação. E é aí que entra, por exemplo, o cenário político brasileiro, com um elegível que já demonstrou despreparo intelectual grosso para governar o país, manter o apoio de milhões de pessoas, que cegam-se ao desnível de seu candidato. Mas não é apenas a este momento que se deve o exemplar, e sim ao conjunto que se levou a ele. Pois um partido que pregava o desenvolvimento da população pela igualdade social, conscientização de classes e estímulo à educação e saúde, considerando um povo capaz como primordial à evolução ampla do país, em algum momento, teve sua alta cúpula corrompida, no que posteriormente terminou na demonização de seu nome e destituição do poder - só que, tragicomicamente, orquestrada por um grupo tão vil e desonesto quanto, e não pela retomada da ordem que se esperava.
A situação em que vivemos, com o crescimento da extrema-direita, é de incredulidade, afobação e desesperança total, onde a ignorância e desinformação de pessoas carrega como solução um homem que critica a mamata do estado, quando ele se mostra um de seus maiores beneficiários, juntamente a seus filhos; propaga um ódio abrangente anti-minorias: negros, indígenas, mulheres e qualquer um que fuja da norma heterossexual.
Em uma comunidade séria e sensata, como vemos por publicações internacionais, seu nome jamais deveria ser sequer considerado ao cargo de presidente da república. Mas também já nos disseram isso sobre o Impeachment, e nada foi feito. Julgam uma quadrilha de ter destruído o Brasil, mas temos outra no comando, e outra prestes a assumir. Charles de Gaulle parece ter sido visionário quando disse, em 1963, que "O Brasil não é um país sério".
O mesmo ocorreu na eleição de Trump, que incrivelmente ainda é uma versão menos radical do que o Brasil tem em Bolsonaro. "Precisamos de mudança", é o que clamam seus defensores - ao menos os não tão afoitos que acreditam em coisas como a Ursal, que já não conseguem raciocinar deliberadamente.
Sim, precisamos de mudança, pois onde quer que olhamos, só vemos sujeira, corrupção e o ocaso do Brasil como um todo, numa promessa de futuro rico que nunca chega, um desenvolvimento que só se distancia. Se o poder corrompe o homem ou o homem corrompe o poder, qual o sentido de se colocar no pleito alguém que já está, notoriamente, corrompido? Será que o brasileiro que optará por esta ideologia sempre guardou, dentro de si, tamanho ódio e preconceito?!
Porém, existe uma outra parcela, que não concorda com essas atrocidades que falam Bolsonaro e sua órbita. Relativizam tudo e, como a atriz Regina Duarte postou hoje, acreditam que ele diz o que diz "sem maldade". É tudo brincadeirinha, atestam.
Será?!
No prestigiado filme BlacKkKlansman, de Spike Lee, com lançamento aos cinemas previsto para o dia 22 de Novembro, Ron Stallworth, um negro estiloso e com um selvagem penteado crespo, se torna o primeiro policial "de cor" em Colorado Springs, no Colorado, ao final dos anos 70, num sistema de racismo velado que já superou as Leis Jim Crown, mas que mantém grande parcela da população com o pensamento da supremacia branca contido. Ele lidera uma operação que tem como objetivo se infiltrar e desmascarar os membros e intenções da Ku Klux Klan local.
Como mostrado no excelente documentário A 13ª Emenda, o racismo nos Estados Unidos nunca desapareceu, por mais que fossem estabelecidas leis de igualdade e tímida inclusão negra na sociedade com o avançar das décadas. O fato é que, naquele período, as cidades eram, exclusivamente, como polos distintos, uma área branca, outra negra, com o sistema penitenciário sendo um serviço lucrativo, focado na apreensão de negros, graças à "brecha" da emenda, que aboliu a escravidão “salvo como punição de um crime pelo qual o réu tenha sido devidamente condenado”. O que vem a seguir? A massificação de negros detidos e o combate desleal por parte da polícia.
No filme, vemos também uma frente de resistência negra, relacionada com os Panteras Negras, a quem o criador do FBI, J. Edgar Hoover, considerou como as maiores ameaças dos Estados Unidos, que luta pelo fim da desigualdade de tratamento dos negros, autonomia e orgulho da cor, sempre exibida como de "segunda classe". Esta insurreição foi provocada pela indignação centenária que nunca se findou mesmo com a aquisição de direitos. Mesmo uma década passada da aprovação dos direitos civis, a inclusão era precária, segregando a população negra a bairros periféricos, e um abordagem desigual da aplicação de leis.
Um exemplo disto esta em outro filme, Detroit, que relata as rebeliões ocorridas na cidade-título em 1967 - em razão da indignação com os inúmeros casos de opressão e brutalidade da polícia com a população negra -, posteriormente expandidas pelo território americano.
Apesar da abolição da escravatura em 1863, foi só cerca de um século depois que extinguiram-se as Leis de Jim Crow e a batalha dos direitos civis foi vencida pelos negros, no que findou uma série de absurdas sanções morais e diminutivas a estes. Deveria ser o encerramento de uma era de barbárie consentida pelos órgãos de poder, cujos mandatários compartilhavam desta visão obsoleta, mas que se estendeu até a época do filme, nos ano 70, e até hoje.
A Doctor e Rosa Parks. |
No capítulo em voga, a Doctor, junto com seus três auxiliares, um velho branco, uma descendente paquistanesa e um negro, este trio sendo todo inglês, são surpreendidos pela agressividade e repúdio com que os brancos tratam os negros, claramente como inferiores, se recusando a servi-los em pubs e demonstrando asco ao toque. Usei a palavra surpreendidos pois, vindos de 2018, é natural que tenha passado despercebido o retrocesso, estudado somente em livros, a qual acharam que nunca teriam de passar. Só que não é bem assim.
Se podem cursar faculdades na mesma classe de brancos, sentarem livremente em conduções públicas e arranjarem qualquer emprego, isso não significa a extinção do racismo, que ele não existe, como dizem alguns privilegiados alienados aqui no Brasil. Graças a pessoas como Rosa Parks, a fagulha que acendeu a fogueira, eles têm, sim, mais acessibilidade, mas como expõe Ryan, o negro, e Yasmin, a paquistanesa, ambos ainda são vítimas ocasionais de desrespeito étnico, o legado nocivo das teorias seculares da propensão do negro à violência e a ignorância do branco na estagnação
cultural e cognitiva dos povos afrodescendentes, graças ao desserviço colonizador europeu.
Em BlacKkKlansman, a luta de Rosa Parks, Martin Luther King e Malcom X já abriu portas aos negros. Ron vira um detetive e até comanda brancos com os quais constrói relação amistosa. Mas a KKK ainda está lá, com sua ideologia de purificação. Inicialmente, seus integrantes são caracterizados com desdém, quase que um teor cômico: um bêbado, um explosivo crente em teorias da conspiração. Todos igualmente estúpidos. Zombamos deles, como fazem os brancos da delegacia, que parecem crer se tratar somente de papo furado.
Isso não lembra um candidato à presidência da república que você conhece? Um homem de terceira idade, que alguns anos atrás passou a ganhar notoriedade em um programa humorístico sensacionalista por suas opiniões fortes e extremistas, que defendia a submissão de minorias, a posse de armas de fogo, desprezava homossexuais, falava em torturar e sentia profunda nostalgia por décadas passadas, da ditadura. Era um parlamentar diferente, e que por abraçar o politicamente incorreto, com frases de efeito, agradou muitas pessoas, despertando um sentimento de cumplicidade entre eles. Esse político foi tratado, inicialmente, como piada, apenas para dar umas risadas culposas na proteção de casa.
No longa de Spike Lee, o que era uma organização esnobe e decadente que parecia mais uma desculpa de marmanjos frustrados para beber e esbravejar como a América estava acabada e queriam açoitar um negrinho, como os tempos bons eram em 1910, 1915, se mostrou realmente isso, até que se tornou algo maior, um atentado terrorista que por muito pouco não acabou em tragédia. A vista grossa dos policiais, o descaso das autoridades e a conivência com a manutenção da ideologia da supremacia branca, tratada como jocosa, permitiu isso.
Ano passado, nos Estados Unidos, houve uma procissão de vários homens brancos simpatizantes com esta filosofia, que se orgulhavam de bradar como rejeitavam miscigenação e devem achar o Holocausto algo lindo, ou talvez manipulação da mídia. Donald Trump, o presidente de extrema-direita americano, em seu comunicado sobre o caso, minimizou o ocorrido, dizendo que havia pessoas violentas dos dois lados (os neonazistas e as pessoas que protestaram contra os envolvidos), que havia cidadãos de bem lá, afinal.
Pessoas de bem, este mesmo termo, tornado basicamente um mantra da direita e extrema-direita brasileira, para simbolizar o grupo de reacionários que prezam, dizem eles, pelo nacionalismo, a família tradicional, os bons costumes e o bom Senhor Jesus Cristo. Detestam, acima de tudo, os Comunistas, que pra eles, são defensores dos direitos civis, progressistas a favor da ideologia de gênero, aborto, legalização das drogas e desarmamento. São todos vagabundos que devem ser fuzilados, presos, torturados.
Se você mandar o parágrafo anterior a um membro da KKK, ele dirá "Amém". Se você perguntar a um membro da KKK o que ele acha de si mesmo, se declarará uma pessoa exemplar, um cidadão de bem.
David Duke, ex-líder da KKK, que está no filme de Spike, ficou muito contente com a eleição de Trump. “Faz coisas boas e outras com as quais não estamos de acordo, mas sim [nos identificamos com] Trump, não especificamente pelo homem, mas pelo significado, os princípios.”
O mesmo David Duke que elogiou Bolsonaro, poucos dias atrás, ao dizer "Ele soa como nós".
Bolsonaro e Trump já se mostraram contrários ao movimento da KKK. Mas será que é suficiente, quando dizem tantas coisas sinistras? Assistindo a BlacKkKlansman, não pude deixar de, ironicamente, sorrir, tamanha a adequação do que queria dizer Spike Lee ao nosso contexto. O diretor, ativista negro fervoroso, quis fazer uma relação entre aquela situação da década de 70 e a atual, mostrando como o discurso de Trump normaliza e resgata todo o ódio étnico, vulgo preconceito, que se não sumiu, arrefeceu, encrustado dentro dos detratores, seja por vergonha, seja por medo. A xenofobia e insensibilidade de gênero exibidas pelo representante maior do país mais poderoso do mundo abre um precedente para que se alimente a barbárie, quanto mais quando ele resolve chamar de "pessoas de bem" a neonazistas.
Topher Grace como David Duke. |
Pois o candidato que surge na pole position da corrida presidencial defende o patriotismo com sangue nos olhos, a família tradicional, os bons costumes e o bom Senhor Jesus Cristo. Detesta, acima de tudo, os Comunistas, que pra ele, são defensores dos direitos civis, progressistas a favor da ideologia de gênero, aborto, legalização das drogas e desarmamento. São todos vagabundos que devem ser fuzilados, presos ou exilados.
Bolsonaro ainda nem botou a faixa no peito e a normatização do ódio que ele se orgulha é praticado livremente por seu séquito. A quebra da placa de uma mulher negra e ativista de esquerda, vítima de homicídio nunca solucionado, exibido com um largo sorriso pelo praticante. Uma jornalista esfaqueada. Um mestre em capoeira morto. São pelo menos cinquenta ataques. E isso tudo, novamente, antes de confirmada sua vitória. Imagine depois?
O direito de expressão já se encontra sabotado, pois opositores do B17 têm medo de exibir suas cores devido aos casos de agressão, alguns passados com impunidade. Pessoas indo votar exibindo suásticas pelo corpo, as pichando em igrejas. Ameaças à minorias expostas sem hesitação. O que o candidato tem a dizer? Que não pode fazer nada.
A janela do Brasil já está quebrada. Como o experimento que inicia este texto comprova, a solução é consertá-la, não arrebentar as outras três.
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