Mamoru Hosoda e o Espetacular Ordinário


Meu gênero cinematográfico favorito é o da animação. É um gosto que amadureceu com o tempo, e ao invés de enfraquecer com os anos, apenas evoluiu de acordo com minha percepção e experiência em relação ao mundo. O que me fascina, tirando a mera tonalidade animada, é a suspensão de descrença que, mesmo em universos mais realistas e habitados por humanos, permite transgressões físicas, para gags ou dramaticamente, e toda a infinita miríade de estilos que se pode fazer com ela. Por exemplo, os indicados ao Oscar de animação em 2019: do 3D impecável de Os Incríveis 2, passando pelo 3D todo "cool" de Aranhaverso e os traços japoneses característicos de Mirai.

São três filmes que pertencem ao mesmo gênero, mas apresentam uma diferença estética e de conteúdo mais ressaltada que em qualquer live-action, por mais fantasioso que seja. Sua única similaridade é serem, de fato, longas animados. Seria como comparar cães, avestruzes e ornitorrincos pelo simples fato de serem animais.

Transcendendo sua técnica, porém, é o alcance, acessibilidade e argumento de sua história que definirão seu potencial - atemporal ou não. E nisto, todos os três filmes supracitados se destacam. Por isso receberam nomeações ao mais prestigiado prêmio - ainda que não o mais democrático. Já passou do tempo em que, por serem animações, tais obras são taxadas de infantis. Existem, é claro, animações feitas a um público infante, mas o cinema de gênero é uma variação do que são o drama, a ação ou qualquer outra demografia, e que devem servir, sem restrições, a diferentes idades. E assim são as grandes animações: compreensíveis a um público menor, palatáveis a um maior; divertido e cativante a ambos.

Nestas adequações, poucos nomes contemporâneos se comparam a Mamoru Hosoda, cinquenta e um anos, japonês e um dos cineastas que tentam expandir o cinema nipônico ao Ocidente numa era em que o Ghibli, a referência, perde força.


Curiosamente, a trajetória de Hosoda se encontra com a do cabeça da animação japonesa, Hayao Miyazaki, em suas origens: o fato de só ter atingido o pleno estrelato após fundar o próprio estúdio, tendo enfrentado anos de trabalho restrito por produtores e desventuras criativas. Um destes casos, no próprio Ghibli, quando foi demitido após não satisfazer seus superiores com as ideias que tinha para O Castelo Animado, que posteriormente seria dirigido pelo próprio Hayao.

Sem parecer nutrir rancor, Mamoru encontrou a própria voz ainda sob as amarras de uma casa alugada, no caso o Madhouse, onde dirigiu A Garota Que Saltou no Tempo e Guerras de Verão, até inaugurar o Estúdio Chizu, dessa vez como manda-chuva, com Crianças Lobo, em que, por mais autoral que seja o trabalho, conta com referências, suaves e outras vezes mais agressivas, do que Miyazaki popularizou - nada surpreendente visto que este moldou o referencial animado japonês -, tal qual como Nietzsche fez com qualquer filósofo que veio após ele.

Mesmo escolhendo tramas mais pessoais e íntimas desde que não precisou mais relatar suas ideias a ninguém, entretanto, a filmografia do cineasta contou com um elemento em comum: relações familiares e o amadurecimento infantil. Em outros termos, ele adora criar coming-of-age.

O que tem demais nisso? Você pode se perguntar. Não é exclusividade de Hosoda discutir tais assuntos na grande tela. Como Treinar o Seu Dragão, A Canção do Oceano, Divertida Mente, Frozen, O Rei Leão, Up, Os Incríveis, A Pequena Sereia...Todos, de épocas e estúdios diferentes, mas que conversam e educam os mais pequenos com mensagens positivas - por vezes didáticas demais, inclusive - acerca de amizade e família.


Oriunda da escola menos sensível e tendente à censura do mercado japonês, com a rica cultura local, Mamoru Hosoda é, então, ideologicamente um descendente de Miyazaki, e não um simulacro deste, como o próprio filho do lendário cineasta (Goro Miyazaki) tem se mostrado até então.

"Eu tendo a me inspirar pelo que acontece ao meu redor", disse Hosoda em uma entrevista. De fato, segundo ele, Summer Wars surgiu após perceber como o casamento nos rodeia e aproxima de tantas pessoas diferentes - os parentes do cônjuge -; Wolf Children é fruto de seu primeiro filho; Bakemono no Ko sobre a paternidade recém-descoberta e, finalmente, Mirai, sobre como o nascimento de sua filha impactou o comportamento do irmão mais velho.

Porém, além de um cinema autobiográfico, as histórias de Hosoda usam o conhecimento do diretor assim como qualquer criador usa das próprias experiências em seus projetos, para discutir temas universais com um público muito além do que a própria casa ou país.

Talvez a frase que melhor sintetize seus princípios como contador de histórias seja: "Pessoas facilmente ignoram que as coisas mais importantes ou amadas estão em suas vidas cotidianas. Incorporando sci-fi e elementos de fantasia, a audiência é mais disposta a descobrir o que ela não nota normalmente. Eu espero que o público possa ver além dos efeitos espetaculares e enxergar o que há de mais importante para eles mesmos".

Tal alegação pode soar utópica e inocente. Podemos pensar em sua riqueza, a vida confortável que leva e o privilegio de ter uma mente tão criativa e a oportunidade de trabalhar com aquilo que ama. "Ah, assim fica fácil dizer que o importante está nas pequenas coisas, sem precisar se preocupar em pagar as contas e pegar metrô cheio."

Entretanto, eu vejo tudo isso como facilitadores para Hosoda transmitir boas mensagens e fazer excelentes filmes, em conteúdo e imagens. Um aprendizado que urge em se introduzir de modo lúdico aos pequenos, valorizando a animação 2D, mas sem dificultar e encarecer sua filmagem com a mentalidade rígida de anciões como Miyazaki, que desprezam a computação gráfica.

Ao buscar destacar a beleza do comum em meio ao fantástico, Hosoda pode transformar as pessoas em cães lutadores ou lobisomens inteligentes, mas seus enredos andam de mãos dadas com temas pessoais. O maior inimigo acaba sendo a relação conturbada com o pai. O mundo só será salvo com o auxílio e aceitação de todas aquelas pessoas até então inconvenientes que vieram junto com sua esposa. Talvez pular no tempo seja possível, mas como ensinou Fullmetal Alchemist, as benesses não vêm de graça, e sim com forte causalidade. Para corrigir algo, se perde alguma coisa, e se descobrem outras que talvez farão mais falta do que o fator primário.


É por isso que os momentos mais marcantes em seus longas não são épicos, nababescos ou visualmente espalhafatosos. E sim, uma mãe brincando na neve com sua prole, ou então pétalas de cerejeira caindo espelhadas aos olhos de um garoto de quatro anos. O que garante a Mamoru o caráter de mestre é, mesmo em erros de roteiro ocasionais, a competência em equilibrar o "for fun" com a delicadeza e a doçura de um abraço ou um diálogo comovente, sem tornar cenas mais cotidianas em chatices que prejudicam a diversão, e sim em catarses mútuas, equivalentes para a existência da obra. Trabalhando assim, ele faz, e não somente fala, em destacar o comum e torná-lo no verdadeiro fantástico.

Numa época em que o Japão contradiz o padrão da superpopulação mundial com taxas de natalidade tão baixas que são chamadas de crise, afetando a mão e obra e, consequentemente, a economia e jovialidade de um país envelhecido, a paixão - e realismo - com que o cineasta conversa e mostra histórias sobre e para famílias enriquece a mente das crianças e o próprio cinema.

"Como crianças crescem é algo misterioso, maravilhoso. Como uma invasão alienígena, um roteiro de Hollywood. É incrível, mas o desenvolvimento de uma criança, como elas crescem, amadurecem, se tornam fortes e adquirem a mente e um adulto, é simplesmente fantástico. Eu acho que é o tipo de espetáculo que deveria ser retratado em filmes. E o mesmo serve para mudanças em adultos; como alguém pode se apaixonar completamente com alguém e como pessoas se desapaixonam quando algo acontecem. Recriar essas mudanças em pessoas é o papel de filmes." - HOSODA, Mamoru.

Na era do cinismo e do isolamento, problemas sérios no super desenvolvido Japão e que se expandem pelo globo, o cinema - e o mundo - precisa da mentalidade empática e amorosa do diretor.

2 comentários:

  1. Eu não me lembro ao certo quando eu notei que animações não são somente para crianças, pois acho que eles sempre estiverem comigo durante toda a minha vida, mas talvez tenha sido quando comecei com o estúdio Ghibli onde eu conseguir ver que havia uma profundidade maior naquela historia sendo contada.
    Isso na verdade é algo que acaba me atraindo bem mais dentro do cinema de animações orientais, não que as ocidentais não tenham suas mensagens, mas sinto que no cinema asiático ocorre uma maior profundidade sabe, o ultimo filme que eu vi foi o Rapaz e seu monstro e fui acreditando que seria um filme de fantasia e um pouquinho de ação, mas acabei gostando dele bem mais do que eu esperava sabe, e isso é muito bom! Quando você vai ver algo sem nenhum compromisso e o filme de agarra de um jeito que você não aguardava, principalmente quando são animações pois vamos mais desarmados e descompromissados.
    Acho que a animações ocidentais ainda perdem nesse quesito de trazer mais sensibilidade e profundidade, mas nada que seja um crime ou pecado, mas pelo fato da animação asiática ter esse algo especial que me faz ainda nutrir um carinho muito grande pela cultura, principalmente a nipônica.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Não sei se é sensibilidade, mas as animações asiáticos trabalham melhor com naturalidade e humanidade do que os americanos, que focam demais no fantástico e no fantasioso.

      Excluir