Retrato de uma Jovem em Chamas; O amor como dualidade e caos - Crítica
Há uma metalinguagem artística explícita no filme, o que a fala de Marianne somente corrobora e elimina indagações, o que talvez elimine uma maior variedade de interpretações, expondo uma ideia até então intrínseca. No entanto, como diálogo contextual, é nele que a obra alcança sua transcendência entre o real e o fantasioso, adotando a dubiedade inseparável do romance com a tragédia, e isto não como lamento, e sim como uma beleza caótica inexorável e talvez, só talvez, deliberada.
Não se deve esquecer, porém, que o filme é um estudo de personagens, acima da própria homenagem às artes e ao próprio conceito. Poucas vezes o amor como símbolo foi retratado em tela como uma força motriz tão autônoma e imparável quanto aqui, encontrando ecos nos dramas shakespearianos, numa carta de repulsa sádica ao estoicismo, a filosofia que renega as emoções na busca da felicidade verdadeira.
No universo em combustão criado por Céline Sciamma, aqui diretora e roteirista, além de até amante de uma das atrizes principais antes das filmagens, a emoção é o condutor da vida, assim como fora nos períodos mais aclamados da literatura, das pinturas e, mais contemporaneamente, ao cinema, que encontrou seu principal correspondente público no romantismo. É preferível a morte imediata de um coração quebrado à anemia longeva de uma existência em ascese.
Para Céline, o amor é o principal deles, mas não numa vista melodramática e redentora, e sim num desnude cru, desorientador e impiedoso. Não é somente carícias e declarações. Pouco há isso, na verdade. E sim uma vertente sexual esmagadora, e que cena melhor para representar isto que ver seu próprio reflexo na região genital da parceira. Não há um segredo entre elas, e nenhuma discussão acerca de homossexualidade e homofobia (o que seria típico e esperado num longa passado no século XVIII) é sequer arranhada. Céline parece dirigir no instinto, na legítima paixão, tanto quanto Marianne e Héloise passam a sentir uma pela outra durante a projeção, em externalizações encontradas nas frequentes chamas que passam a dominar o foco das mulheres no andamento da trama, entre velas e lareiras, até literalmente incendiar uma delas numa fogueira que borra a visão, como ao despir-se do rigor formal opressor.
O eroticismo aqui reverbera o de "Azul é a Cor Mais Quente" e nas obras do saudoso Nagisa Oshima, e no entanto, supera a ambos, primeiro pela ausência do male gaze, que por mais revolucionário que chega, deturpa a própria poesia da ação; e segundo, pela abordagem menos masturbatória de Céline, e sim no ardor psicótico com que desenha as provocações e a repressão que ambas tentam segurar, até a chama se tornar insuportável demais, mais fatídica que qualquer inconsequência que poderia ser enfrentada por agirem como fazem. Nada mais importa fora aqueles parcos dias de revolução interna.
E ainda assim, no meio do turbilhão que é uma paixão recente, ainda mais uma do sexo oposto numa era em que isso era considerado doença mental, o racionalismo de que se encontram numa célere temporada, quase como um sonho, como várias passagens mais oníricas expressam, é palpável. O final feliz jamais é abordado, ameaçado, arranhado.
A conclusão é a memória, o fim de tudo que resta. Frustrações, desejos, calor, umidade, tudo encravado na sobriedade de uma pintura. Vil e poético. Esta foi a opção de Orfeu.
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