Casa Gucci (2021) - Crítica


Para Aristóteles, como discutido em seu seminal "Poética", os gêneros da narrativa humana se dividem entre tragédia e comédia, mas não pela distinção convencional e absoluta que temos hoje. A tragédia é usada para contos de heroísmo, de pessoas virtuosas e redenção; enquanto a comédia fala da vida satírica de entes "inferiores", viciados. Dos medíocres.

Por várias vezes em "Casa Gucci", me peguei pensando no que diabos estaria Ridley Scott tentando fazer com certas escolhas técnicas e narrativas na composição de seu novo filme, o segundo no ano, ambos com mais de 150 minutos (um tremendo esforço para alguém de 83 anos). Até que, de repente, me lembrei das teorias do filósofo Grego. A adaptação estelar do caso real, baseado no livro homônimo que detalha essa história, de 2001, pela escritora Sara Gay Forden, adota o farsesco moribundo da comédia Aristotélica, das pessoas viciadas. Optando por retratar a burguesia italiana moderna como caricaturas de ganância e decadência. Como pessoas ridículas e tristes. Fadadas à paranoia e ao isolamento. 

É costumeiro da sétima arte retratar a nobreza, seja em tramas de época ou modernas, com cinismo e putrefação. Seja com monarcas opulentes e excêntricos (como o próprio Scott fez com o Rei Charles VI em seu recente O Último Duelo) ou magnatas covardes e frios. Mesmo a série contemporânea que serve de epítome a este mundo que nem compreendemos, Succession, sendo um drama, não deixa de se destacar no frequente humor para ilustrar e zombar do estilo de vida e personalidade dos mega ricos. A escolha de Scott pela segunda opção surpreende, porém, por um certo radicalismo ao adotar tal postura, mas também contradições dentro da própria lógica do filme.


Antes de tudo, é preciso defender que o material original da história, o livro, possui partes cortadas do longa que evidenciam excentricidades nitidamente "bizarras" e que reforçariam ainda mais o tom cômico quando expostos na fita, que envolvem o exorcismo de um Iate e uma guerra velada de médiuns. No círculo cinéfilo de hoje, diria-se que Scott apostou no lado "camp" da história, termo cunhado por Susan Sontag e que agora se populariza na crítica cinematográfica. 

São acontecimentos, entre tantos, que são ridículos de se ler e somente se assume sua exclusão do corte final (ou até da filmagem) para não escrachar demais o longa da "realidade". O diretor busca equilibrar os Gucci retratados entre os imbecis (ou o personagem de Leto) e aqueles somente canalhas e frios, os capitalistas natos e sem empatia (Jeremy Irons e, em partes, Pacino), criando basicamente um coming of age na figura do Maurizio de Adam Driver, do homem puro que não simboliza os ideais de sua família mas é rapidamente corrompido e sobrecarregado pelo fardo Gucci. "Você casou com um Gucci", ele responde quando Patrizia diz ter se casado com um monstro. 


A verdadeira maestra do assassinato, a socialite vivida aqui por Lady Gaga se tornou o emblema do esnobismo e obsessão por riqueza. Há uma frase icônica sua: "É melhor chorar num Rolls-Royce que ser feliz numa bicicleta." A impressão inicial é de que sua compulsão por grandeza e enriquecer são o combustível para deteriorar a pureza e ingenuidade do personagem de Driver, que logo a supera e demonstra mais desprezo e antipatia para com o mundo, aí adotando direito a postura de sua classe social. A sutileza de Scott está, inicialmente, em reforçar em contrastes a hipocrisia do nascido rico e privilegiado em rejeitar temporariamente a própria fortuna e brincar de humildade, enquanto é somente natural ao desprestigiado abraçar a oportunidade de subir socialmente. Isso não é usado para justificar seus atos finais, mas sim a ânsia por adentrar o legado da família, quando ainda era somente uma questão de fazer parte e agradar. Para isso, a personagem Patrizia é "empobrecida", para desaprovação do pai de Maurizio, interpretado com amargor e repulsa por Jeremy Irons, enquanto na vida real ela, apesar de nascer pobre, desfrutava de riqueza pelo novo casamento da mãe. Até por isso se conheceram numa festa elitista. 

Entretanto, Scott nunca define a atmosfera correta para retratar este universo. Como supracitado, se Leto assume prontamente o "campy" em sua atuação, Pacino, Irons e Driver buscam o realismo, enquanto Gaga procura a teatralidade dramática para compor Patrizia como alguém expressiva e intensa. É uma ambiguidade arbitrária por Scott, sem dinamismo e definição, que se desconectam tanto quanto a montagem, por vezes amadora em como não conclui certas cenas e as ligas incongruentemente.

Com uma longa duração, a comédia, conforme a compulsão por riqueza vai destruindo seus personagens aos poucos, é substituída por uma melancolia perene e opressiva, e é aí que o filme encontra sua melhor apresentação, num modo similar a outro projeto tematicamente análogo de Scott, o burocrático "All The Money In The World". Apesar das tentativas de inovar e adentrar o novo Século na moda, todos aqueles personagens desfilam com vestuário sóbrio, antiquado e correto, circulando por espaços enormes e esvaziados, com móveis cinzentos ou de um dourado ausente, imponentes contra as figuras apáticas, espremidas e presas em um comportamento maníaco. Na figura de Maurizio, é como se virar o que se tornou fosse sua única chance, no máximo auxiliado pela ambição de Patrizia. Isso não deixa, porém, de soar incoerente com a primeira parte da película, sempre numa mescla de seriedade com cafonice melodramática deliberada.


A Casa Gucci é, então, como um "O Talentoso Mr. Ripley" trocando o suspense pela comédia deprimente. A burguesia é esnobe, falsa e cruel, e quem vem de baixo, porém, só inveja poder estar na mesma situação. Não deixa de ser uma visão bastante niilista e pessimista da sociedade como um todo. Como se todos os personagens fossem iguais às famílias de Parasita. Indiferentes pelo próprio excesso ou ávidos para replicá-lo. Pela idealização de Scott, no mundo só há espaço para a comédia aristotélica. Dos viciados e entorpecidos por poder. 

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