Eternos (2021) - Crítica

São incontáveis as histórias da mitologia grega em que os Deuses descem de seu Olimpo disfarçados em busca do prazer entre mortais. Sendo os deuses mais belos, atléticos e superiores em qualquer característica, o que leva estes seres imortais a virem atrás de diversão num grupo inferior? Impunidade, é claro, mas acredito que muito se deve ao tédio da eternidade e da perfeição. A mordaça que aferroa pela apatia da rotina de extenuante enfado. 

Não se inveja a celeridade pela maldição do envelhecimento, mas sim o encontro imediato do prazer consumado sem a garantia do sempre. Não é em vão que a humanide perdeu seus próprios direitos à imortalidade e eminência pelos mitos das eras: pois com elas, não haveria motivo para venerar os deuses, e estes logo perdiam qualquer refúgio da própria condição. A resposta foi minguar o tempo e a capacidade dos entes, culminando na presente idade do aço. Seres destinados ao breve e ao medíocre, mas intensos e apaixonados. É um visão condescendente que só se configura como marionete e teatro aos superiores, como um jogo de ego. Brincar com o sofrimento daquele que definha, ao mesmo tempo garantindo um enlevo do próprio bem-estar, de "ainda bem que não sou você, pobre criatura".

A plot de Eternos discute em toda sua duração justamente esse embate ideológico entre mortais e deuses, em que é visto como generosidade dos dotados oferecer a evolução e proteção da raça plebeia. Um olhar complacente e penoso de como os deuses nos encaram, com a pena que lidamos com os animais em sua selvageria natural. Grande parte da história humana é de submissão aos mitos e dogmas celestiais, para usar o nome dos seres supremos do universo apresentado em Eternos. É uma era vista de uma era com saudosismo como mais inocente e magnífica, mas também de barbárie. De atrocidades cometidas em nomes e leis ditas divinas, também para nossa própria conveniência. Em suma, sempre foi uma jogatina de poder em que o homem usou a figura divina para se beneficiar e controlar seus semelhantes transformados em subalternos. Reis medievais eram a representação de Deus na terra pois isso era melhor para a corte. 

Se a divisão entre o Pathos, a emoção, e a razão, ou Logos, é demarcada pelo início da Idade Contemporânea com o Iluminismo e a defesa do raciocínio acima da religião, viramos uma sociedade abandonada e que matou Deus, mas ao mesmo tempo luta para mantê-los no controle e fugir da maldição da liberdade, como cunhou Sartre.

O grande desafio dos Eternos, como deuses menores pela cultura grego-romana, ou então anjos vigilantes, pela cristã, é pôr-se como intermediários e aceitar esse papel trancisional entre assumir uma condição divina e de controle, e aceitar o anonimato social posterior em que deuses são figuras literárias e adaptadas para bel-prazer (desvirtuadas), mas certamente repelidas se apresentadas fisicamente. É por isso que os novos Deuses são os heróis. Admirados, mas não cultuados, não como antigamente. O cancelamento e ostracismo é devido a cada um que sair da cinta social. 

Em primeira mão, a visão de Zhao pode até parecer ser de defesa do teocentrismo ao apresentar uma distinção clara entre a pureza idílica do mundo pré-moderno, suas construções babilônicas e o filtro dourado com luzes refletidas para ressaltar o belo, mesmo que beligerante, em contraste com o cinza segmentado e superpopulado do presente. O argumento da cineasta, entretanto, sempre é pelo humano, e por isso, Eternos é uma história de emancipação, em que todas as tribos ali presentes - humanos, eternos e Deviantes - são vítimas de um projeto messiânico, longevo e genocida de um ser superior, mas despojado de qualquer sensibilidade. É uma óptica, inclusive, ver os Deviantes como as grandes vítimas do longa, visto que foram criados e jogados à terra com um único propósito, e depois negados este e destinados à destruição. Descartados do único motivo pelo qual foram criados, como um brinquedo. 

Quando o Druig de Barry Keoghan diz que sem as falhas, os humanos não são humanos, a despeito do clichê da frase, ele faz uma defesa justamente do direto à imperfeição sem a iminência do julgamento de alguém dito maior, que é o grande ponto de Zhao tanto pela representação e guia do texto, quanto pela expressão visual do mundo, frequentemente em panorâmicas em planos que ressaltam uma beleza filtrada do ambiente, encontrando o divino através da própria natureza, sobrevoando paisagens como se a própria câmera fosse um deus observando tudo. É uma escolha óbvia considerando os projetos anteriores da atriz, mas dessincronizados com o método Marvel de se fazer filmes - só considerar como, apesar de tentar manter a própria assinatura visual, o diretor de fotografia do projeto foi contratado em imposição pelo estúdio, Ben Davis, um velho da casa e que bem assimilou seu estilo, obedecendo ao Deus local, Kevin Feige. 

É por isso que as cenas de ação soam tão deslocadas e até mal filmadas, com erros de continuidade deletérios, cortes desconexos e uma sucessão de confrontos no escuro com baixo contraste, o que nos impede a visão - problema similar enfrentado por Shang-Chi. Zhao tem claramente uma abordagem sobre quem são os Eternos e o que eles representam, mas ela é apenas uma locatária dentro de um projeto magnânimo maior, e que por si só tem suas demandas intrusivas e formulaicas ali - a ação, as piadas corta-clima, as referências a um universo maior. 

O personagem mais lúcido dentro da equipe, então, é o Kingo de Kumail Nanjiani e seu mordomo, que realizam um documentário dentro do próprio filme, tentando criar a própria narrativa em tudo aquilo. Isto é, domar sua visão em meio às imposições do "destino". 

A mensagem de Zhao é a da usurpação dos Deuses. O mundo é dos humanos, sem interferências. Porém, ela esqueceu que Deuses não são somente as figuras literárias. Pois num mundo que já os expulsou e relegou à ilustrações literárias e amigos imaginários, a ordem superior local ainda tem comando. E aqui, ela atende pelo nome de Kevin Feige.

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