Noite Passada em Soho (2021) - Crítica


A principal qualidade no cinema de Edgar Wright, desde o debut, é a considerável energia que ele consegue imprimir em todas suas obras, independente do gênero. Muitos vão falar do humor que o consagrou na trilogia do corneto, mas mesmo as edições rápidas e bem sacadas que marcaram estes filmes, só funcionaram pelo seu ritmo, o que se atesta mais evidente nas duas outras fitas que adentram outros gêneros, ainda que sem perder o humor: Scott Pilgrim e Baby Driver. 

Até por isso, não deixou de ser uma surpresa quando ele anunciou seu novo filme, Last Night in Soho, como um terror psicológico. A assinatura do diretor nunca abriu interpretação para isso, como sempre buscou fugir de uma seriedade temática maior, mesmo quando envolvia perigos claros de vida ou morte. No entanto, considerando o panteão de referências narrativas e textuais de sua filmografia, o cinefilismo do diretor é notório e apaixonante, o que viabiliza a possibilidade de aceitar que seria capaz de incutir seu estilo a qualquer abordagem com graciosidade. O saldo de  Noite Passada em Soho, como ficou conhecido aqui no Brasil, é ambíguo justamente por isso. Edgar Wright consegue deixar o terror com uma cara própria. Mas ele não sabe exatamente como fazer terror, com uma ingenuidade adorável, mas bem, demasiado inocente. 


Last Night in Soho segue Eloise, personagem de Thomasin McKenzie, uma aspirante a estilista que vive no interior e convive com histórico de problemas psicológicos na família (sua mãe se suicidou) e parte para Londres iniciar a faculdade. A garota, que possui dons mediúnicos, passa então a se transportar à Londres dos anos 60 durante o sonho, mas o que parece um paraíso logo adentra sua realidade e vira um pesadelo. 

Eu sei que a descrição soa infantil e genérica, e por mais que a sinopse de Wright pareça original, ela se dispersa facilmente na imaturidade do diretor. Pois se seus filmes sempre pediram, tematicamente, a leveza e graça do pulso juvenil, em Last Night in Soho, o cineasta realiza também seu primeiro projeto social, se tornando no processo mais uma vítima da "obrigação" moral de fazer alegorias políticas do cinema contemporâneo, subestimando a verdadeira virtude da sétima arte, que é sua forma, que deve ser aprimorada para fortalecer o discurso, e não somente se apoiar neste como se fosse suficiente. 

Não que o diretor não deva se arriscar, evoluir, mas o atestado de seu despreparo, ao menos atualmente, de interligar o estilo sempre prolífico que conhecemos com um discurso social e que converse com o mundo moderno, é que o filme funciona justamente em seus momentos mais descontraídos e pueris, sendo estes predominantes nos dois primeiros atos, quando ao tentar explorar o horror-psicológico- social inteiramente no terceiro, ele arruína grande parte do que havia construído.


Tenho certeza que Edgar fez a personagem de McKenzie com características autobiográficos nesta paixão nostálgica por algo que nunca se viveu, no caso a Londres sessentista. Em suma, uma adoração idealizada pelas artes à época. Se Eloise se inspira na moda daqueles anos, a metalinguagem de Wright está nas referências dos filmes britânicos dos anos 60 que usou para criar seu mundo, títulos clássicos como Repulsion, de Roman Polanski, e Peeping Tom, a outros desconhecidos que ressaltam o fanatismo do diretor, como Blow-up, e Primitive London. Se mirou nestes, entretanto, ele acertou mais no Lost River de Ryan Gosling, outra tentativa falha de criar uma narrativa onírica e intimidadora com contornos góticos. 

Assim como Eloise subestima Londres em sua visão fetichizada de uma cidade que não é destituída de seus podres, a abordagem apaixonada de Wright pelo cinema à época não se reflete em como ele transmite isso para sua própria fita, desengonçadamente conforme avança nas reais intenções do gênero. Digo isso pois, do começo, enquanto ainda concentrado no maravilhamento da mudança e na ilusão das visões do passado como estimulantes, Edgar expressa as melhores nuances de seu cinema, que é a energia que confere à vida noturna da capital Inglesa da década em questão, deixando-a justificadamente apaixonante e alucinante, algo refletido tanto nos figurinos, design de produção e como as luzes iluminam a personagem de Anya Taylor-Joy enquanto esta vive seu sonho, num uso exemplar e psicodélico de cores. 


Como um estudo de saudosismo e idealização, Last Night in Soho é um projeto interessante e devidamente atmosférico e que destaca as virtuoses de seu realizador. Mas é compulsiva a autodestruição que ele se causa conforme avança, como supracitado, às intenções primárias, que é fazer concomitantemente uma obra do gênero que cultua e um debate social sobre a natureza machista da Londres antes e agora, mesmo que com suas diferenças em como é exposta. E quando chega nisto, Edgar, como foi no terceiro ato de Baby Driver, se autossabota ao revelar seu pior lado, como escritor e diretor, tanto pela imperícia em criar um clima claustrofóbico de fato quanto ao lidar com um assunto sério.

O único esquema funcional quando a vertigem mental de Eloise se despedaça e essa passa a viver um tormento, é justamente na montagem acelerada de cortes rápidos que ilustram o quão perdida a garota está, com um trabalho de iluminação e design de produção que soam cada vez mais opressivos e menos convidativos, em contraste ao início cinematográfico e exuberante. Entretanto, ao lidar tanto com metáforas quanto com o horror literal e físico, Edgar é mesmo como um fã mirim que cultua, mas não compreende de fato os efeitos e causas de sua admiração, tanto do expressionismo quanto do impressionismo que tornaram o Repulsion de Polanski uma referência até hoje. Ele tampouco consegue equilibrar e sequer resolver qualquer uma das tantas mensagens que tenta passar e discutir, perdendo-se desembestadamente e sem ideia de como aprofundar as próprias ideias. 

E isto é extremamente frustrante, pois se concentrei parte da crítica a aspectos negativos, é por ser a impressão final do longa justamente por ele terminar assim, apesar de ter sido eficiente e encantador até na maior parte de sua duração. 


Porém, assim como Baby Driver, e mais intensamente desastroso em seu desfecho até pelas ambições maiores, a sensação definitiva de Last Night in Soho é de um filme que poderia e deveria ser outra coisa. A de um diretor ainda imaturo, longe de sua zona de conforto. O melhor de Edgar Wright é visível em Soho, mas o pior também, e mais explícito. 

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