O Assassino (2023) - Crítica
Quando penso em Fincher, sempre me lembro dele falando considerar que todas as pessoas são, basicamente, pervertidas, e que usa isto para base de sua carreira. Não é preciso uma análise complexa de sua filmografia para identificar isto em seus filmes e personagens, navegando por gêneros, mas sempre com indivíduos moralmente ambíguos, capazes de deslizes morais extremos. Não à toa se consagrou no thriller, em obras que lidam diretamente com assassinato e serial killers. Mas não se atendo a isto, e sim expandindo para obras como Mank e A Rede Social, extraindo - ou evidenciando - a perversão em figuras de várias posições sociais.
Porém, retornando (em partes) para onde se consagrou, é bem natural e óbvio que seu novo filme, chamado "O Assassino", seja um novo capítulo desta assinatura onipresente do cineasta. Mais do que nunca, entretanto, ele mesmo se identifica como tal pervertido, e num estágio tão maduro da carreira, direciona o alvo para a própria cabeça. Pois Fincher atingiu um ponto em que, junto com nomes como Christopher Nolan, Tarantino ou Paul Thomas Anderson, mestraram um formato e a arte cinematográfica a tal ponto de contar uma história, por mais banal, simplória ou genérica que seja, com um estilo autoral a extrair individualidade dela. Isto pode trazer uma frieza monótona e distanciada, como foi em Mank, mas aqui, numa trama mais envolvente e instigante, mesmo tais elementos convergem para a fascinação.
É de se esperar, claro, a frieza vindo de uma obra sobre um assassino de aluguel. Vivido com rigidez enigmática por Fassbender, o personagem-título, entretanto, não é engessado, e sim uma contradição esquemática, assumido e consciente de suas próprias limitações, competente, mas não um gênio. Até medíocre em sua designação. Se Fincher se autoparodia no papel do assassino, é através desse esquema, repetido em off durante toda sua duração, como que externalizando o pensamento do silencioso protagonista, de tantos nomes e sem identidade, em busca da execução perfeita para retaliar uma vingança que veio, curiosamente, como resposta de um fracasso. Quando Fassbender repete sobre não fazer nada sem se perguntar o que irá ganhar por isso, a cada passo, assim como somente lutar as lutas por quais é pago, tudo enquanto executa uma epopeia minuciosa por razões pessoais, a frieza em seu olhar é traída por quem percebe esse sarcasmo contraditório do texto. É como se Fincher o fizesse com um sorriso sádico no rosto.
Ao mesmo tempo, o clima de melancolia da Mise-en-scène, dos poucos diálogos e a fotografia esverdeada evocam o Samurai de Melville e Delon, mas sem perder o riso implícito ao gritar tamanha busca de atmosferização ao usar canções dos Smiths de modo diegético e ininterrupto, tal qual fosse o assassino um adolescente em crise de identidade. Fincher discute e indaga a si mesmo sobre esse perfeccinismo e sua abnegação para com o sistema de estúdios e a nova fórmula do streaming, onde se inseriu nos últimos anos. Não resta nada que não se sujeitar a isto para conseguir alguma distribuição e financiamento para suas ideias. Então, tal qual o absurdismo de Camus, resta achar algum sentido nisto e usar para seu proveito. Assim como Fincher, portanto, o personagem não se abstém de usar da indústria para sua rotina. Airbnb, StarBucks, McDonalds e Amazon são algumas das marcas usadas para tal conveniência.
A autoirônia, entretanto, não esvazia em cinismo o que Fincher faz, pois como cinema de gênero, o diretor não descontrói as tradições esperadas, e sim traz, como supracitado em todo o texto, sua identidade a ele. Não se abstém de, no meio disto, reforçar sua virtude técnica quando filma uma brutal cena de ação, a tensão insuportável quando em modo stealth ou o drama solipsista que engloba toda a jornada do personagem-título, em uma espécie de road movie pessoal por vingança.
Fincher se coloca no alvo como o maior pervertido de todos. E está contente por isto. Bastante consciente disto, e com alguma autodepreciação e autocondescendência. E como a visita final do assassino, com este filme, deixa um lembrete. Ele está lá, ainda que não o veja.
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