O Ranking de Todas as Mídias de Scott Pilgrim

Quando Bryan Lee O'Malley começou, despretensiosamente, a idealizar sua série de Scott Pilgrim, tenho certeza que não esperava tamanha recepção e um sucesso multimídia que já se encaminha com relevância aos 20 anos. Ao espelhar para as páginas, com um traço cartunesco e expressivo, cheio de referências e sacadas visuais inteligentes e bobas ao mesmo tempo as inseguranças e desejos de um jovem adulto, Bryan canonizou na cultura pop um de seus universos definitivos, mesclando realidade com fantasia e criando algumas passagens e figuras icônicas no caminho.

Quando Edgar Wright assumiu o comando de tal obra para o audiovisual, mais do que o nome de um realizador que se identificava com tais elementos visuais e textuais, tínhamos um diretor versátil, apaixonado e ambicioso para a tradução em tela do que antes fora posto em páginas. Ver o surgimento de um fenômeno cult em nossos tempos é uma experiência retroativa. Sempre lemos sobre tais obras de décadas passadas. Mas com pouco mais de 10 anos e a cartilha do fracasso em bilheteria, hoje é meramente aceito que o filme de Wright merece tal alcunha. Visionário e ensandecido, disputa com o Speed Racer das Wachowski o pioneirismo neste cinema de hiperestimulos na adaptação de HQs. Por questões pessoais, fico com Pilgrim. 


Se nunca tivemos uma sequência histórica natural para a vidinha de Pilgrim, porém, é com naturalidade que, após todos esses anos, Bryan Lee e Wright se unem para dar uma nova e amadurecida perspectiva ao universo, numa série de anime que parece bem condizente com a proposta narrativa de ambos os materiais. 

Pois bem, eu revi o filme, reli os quadrinhos e assisti ao anime recentemente. E a intenção deste post é discutir brevemente sobre todas as mídias quais Scott Pilgrim protagoniza sua epopeia pela atenção de Ramona e ranqueá-las (por que não?) por diversão. Então, sem mais delongas, em ordem decrescente, vamos lá:

3º Scott Pilgrim Takes Off - o Anime

Quero deixar bem claro que não estou neste grupo que detesta e desaprova automaticamente a guinada em anime da obra por suas mudanças em relação ao material original. Foi um pequeno susto, de surpresa mesmo, rapidamente superado e aceito. Bem, por que não, não é mesmo?!

Infelizmente, se posso admitir que talvez a mensagem de Takes Off seja a mais bem pensada e elaborada desta "franquia", não foi com tal requinte que a produção a desenvolveu. 

A metalinguagem torna isto uma espécie de "Rebuild of" da série, e aprofunda as temáticas originais, como a responsabilidade emocional que temos em relação aos outros, amadurecimento e autorrespeito, e trazer os Scotts do futuro para discutir o presente, expectativas e a necessidade de aceitarmos os erros e a tristeza como forma de aprendizado são um amadurecimento natural e muito bem-vindo para a obra. Assim como o criador e Wright cresceram no período em que colocaram esforços na criação de suas visões de Pilgrim, o fez o público, e não é necessário pensar muito para entender o porquê de O'Malley não se interessar por somente replicar o que fez tem duas décadas num formato diferente. É até uma fonte de respeito pelo próprio trabalho. Afinal, envelhecer é mesmo ficar mais enfastiado, entediado e cheio de traumas e arrependimentos. 

Porém...a execução de tais ideias parece tudo, menos fonte de paciência e a labuta de anos. A substituição do material original para o novo, dando uma perspectiva e mais tempo de tela e, logo, desenvolvimento aos vilões e outros coadjuvantes não exatamente iguala o carisma que muitas figuras apresentavam antes, ainda que agissem como arquétipos, e mesmo assim mais marcantes. Claro, eles nem eram, de fato, vilões, e sim sujeitos com seus próprios objetivos e sentimentos. Muito discurso com pouca reverberação narrativa. O segundo episódio, quando Gideon e Pattel se enfrentam, é um desserviço em trilha sonora, animação e coreografias, um tanto planas, apáticas e endurecidas, tornando todo o processo bastante desinteressante. 

A trilha sonora também sofre, num cotejo inevitável com o longa. O Sex Bob-Omb e outras bandas davam vida ao filme, com suas onomatopeias gráficas e músicas que, mesmo sem sentido, eram hilárias e energéticas. Tanto no diegético quanto fora dele, se firmando na cultura pop e merecendo uma página própria no Spotify. Reveja a introdução do live-action para já ser imediatamente mergulhado para seu universo, expressando rapidamente toda a estética e abordagem visual do filme em rápidos segundos. Créditos não precisam ser chatos. No anime, é difícil diferenciar um momento de destaque da trilha, com canções automáticas e aborrecidas que tentam soar engraçadas e absurdas, mas são monótonas tanto nos arranjos quanto nas letras. A intenção é fazer a banda soar ruim como eles tanto se afirmam? Método estranho de enfraquecer a própria obra. 

As poucas boas ideias visuais, que mesmo num anime e todo o potencial de absurdismo que o formato traz, ainda são inferiores à maluquice que Wright e sua equipe de efeitos visuais trouxeram para o live-action, e uma das que mais se sobressaem, como as batalhas de arcade, são céleres e rapidamente descartadas para visuais que parecem em papel e, repito, coreografias sem nenhuma carpintaria, nenhum cuidado. 

Já o retorno do elenco original para a dublagem acaba sendo um inesperado tiro pela culatra. Veja bem, o filme toma várias liberdades em relação aos quadrinhos, como a própria personalidade de Scott, vivido pelo frágil Michael Cera, cuja constante confusão e inocência contrastam hilariamente com sua habilidade de conquista. Diferente dos quadrinhos, em que Scott é realmente mais convencido e assertivo. A voz hesitante e suave de Cera não combina com os traços do Scott dos quadrinhos, apesar de terem funcionado perfeitamente bem em suas individualidades em mídia. Outro prejudicado nesta mudança é Wallace, que no anime preserva seu sarcasmo e autoestima, mas com uma perversidade e egoísmo não compatíveis com o que víamos antes. Alguns traços de personalidade são radicalizados, e outros esquecidos. Diria que é a figura que mais sofre nessa nova visão da obra. 

Scott Pilgrim Takes Off emerge como a maior decepção audiovisual do ano. Recheado de boas ideias e num formato que parecia não poder dar errado, se erige como exemplar de que talvez, referências possam funcionar melhor do que a própria prática.

2º Scott Pilgrim - os Quadrinhos 

O ponto zero, ebulido pela mera inspiração vinda de uma música indie não tão conspícua. Não é difícil enxergar os méritos por trás desse estrondoso sucesso advindo de tão simplório esforço. Bryan Lee O'Malley transpôs para as páginas, num traço caricato mas cheio de personalidade, várias das idealizações e temores de uma geração, de uma era, de uma idade. Ter uma banda, mas ela ser ruim. Ser mulherengo, mas incapaz de sustentar um relacionamento. Ter o futuro todo pela frente mesmo sem um objetivo nítido. Só ir levando, sem as responsabilidades sufocantes da vida adulta, com seus amigos e crushs. Festas, música e muito tempo à toa. 

Ao mesmo tempo em que aceita a insustentável permanência de tal estado e a necessidade do amadurecimento frente ao mundo, para si e para os outros. Reler Scott Pilgrim mais velho é entender a própria sabedoria de tais páginas, para além do "cool". É perceber como Scott é bastante babaca, especialmente com Knives. É entender que Ramona precisa de espaço e construir a própria jornada, assim como Scott, ao descobrir o autorrespeito e lutar por si e não somente para o próprio ego. Envelhecer, entretanto, não é somente perder suas facetas lúdicas, e sim dividir responsabilidades - ou pelo menos deveria, quando o sistema permite. 

Um discurso engajado e de fácil relação, mas aí acertando justamente onde o anime peca, que é cercar tal texto com personagens carismáticos e situações que vão do tragicômico ao absurdo sem perder o charme e o encanto. Cada descoberta em Scott Pilgrim, da multa na locadora às passagens na cabeça de Scott, são perfiladas de criatividade e um toque de ansiedade juvenil, por si só atemporais tanto para o velho nostálgico que já viveu aquilo quanto o adolescente que adentra tal reino de tantas possibilidades. 

1º Scott Pilgrim Contra o Mundo - o Filme 

O melhor dos dois mundos - o áudio e o visual. Edgar Wright já desenvolvia em sua filmografia elementos cartunescos, gráficos e físicos que conversavam o tempo todo com a tela. O absurdo na situação mundana e personagens situados em contextos fantásticos, pois a realidade o pode ser. As faíscas de uma química amorosa e as onomatopeias de lutas. 

Se os quadrinhos traziam elementos de anime, Wright traz para a tela a melhor tradução - discutível, como supracitado, com Speed Racer - visual de uma mídia em papel que por si só era feita com tantas referências a desenhos. É o cinema do hiperestímulo feito da forma correta. Não como as distrações do vazio da Marvel, tentando compensar a falta de conteúdio com incessantes piadas e informações supérfluas, mas sim uma cacofonia que expressa o que se vê em tela sem a necessidade da exposição. Wright sempre brilhou pelos raccords, e num universo como o de Pilgrim tem liberdade total para extravasar toda sua inventividade. Deste modo, é divertido e interessante a todo momento e quadro. Entrar na garagem de Wallace e ver a distruição de móveis e seus donos, um encontro na neve e mesmo abrir uma porta.

A juventude é a época mais louca e intensa de nossas vidas, a que descobrimos tantas coisas e nos diferenciamos, meio que decidimos, com a bagagem que temos até ali, o que queremos ficar ou despejar. O'Malley já havia trazido isto para seus quadrinhos, e sem desrespeitar o produto original, Wright faz sua própria visão de tal história, cheia de identidade e pulso, para o cinema. 

Não há desperdício em nenhum frame. Na escolha de um casting agora lendário em suas interpretações e uma inspirada seleção musical - sempre, é claro, acompanhada visualmente por sombras, luzes e efeitos que nenhum show do Coldplay conseguirá replicar. Wright popularizou na cultura pop em imagens o que Bryan já havia apresentado, por si só criando um referencial de gênero que ninguém conseguiu igualar, e se estabelecendo como um cult canonizado no cinema. 

Não é sobre ser igual, e sim sobre saber como e onde ser diferente. Um espasmo tão abençoado, que nem os realizadores conseguiram repetir - nem sequer chegar perto, infelizmente - nesta nova empreitada no anime. 

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