Harry Potter e as Relíquias da Morte: Parte 1 (2010) - Crítica

A crítica a seguir faz parte do projeto dedicado a escrever sobre todos os filmes da série como se vistos à época do lançamento, pela primeira vez. 



Confesso ser essa a primeira vez que eu considerei sair da proposta inicial, de anos atrás, em escrever sobre os filmes como se fosse a primeira experiência. Claro que jamais poderei recuperar o sentimento de ineditismo, e bem, muito menos minha idade então (o que faria os textos piores, por mais que minha imersão fosse mais genuína). Mas digo pelo quanto esse filme melhora com o tempo, num contraste com certas impressões da época, em que o fandom resolveu atacar Yates e condenar sua passagem pela franquia como ruim, muito mais por ausências de passagens do livro do que pelo valor da adaptação em si. O tempo fez muito bem para a marca do diretor na saga, com filmes maduros, coerentes e destacados no valor cinematográfico, não meros aparados de adaptação que ilustram um livro - não que eu, como fã, não desejasse ver certas omissões, ou escolhas diferentes, mas aí talvez seja eu sendo fã e não crítico. De toda forma, deixo esse preâmbulo para validar a sensação. No hoje, os 3 últimos Harry Potter possuem excelente fator de rewatch muito além da nostalgia. 

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A melhor maneira de observar a evolução, coerência e amadurecimento em uma saga, por mais que diferentes mentes criativas a tenham tocado, é notar a mudança de tom entre seus capítulos, a modificando, mas jamais sem perder a alma e essência. Assim como nos livros, Harry e seus personagens amadurecem, acompanhando o público que os lê - aí talvez sacrificando leitores novos que surjam com a obra já findada, mas que consequentemente tendem a vislumbrar o valor da série com o tempo. Harry Potter não se estagna, e é justamente a identificação do crescimento mútuo que enriquece a experiência.

É notável perceber a diferença justamente no início de cada obra para identificar seu tom e intenção. Das fábulas mágicas e imediatamente encantadas dos primeiros filmes, a uma atmosfera melancólica, lúgubre e amarga que representa os primeiros momentos de Relíquias da Morte: Parte 1. Por mais fantástico que seja seu universo, é um senso de realismo, urgência e desespero que engolfa este mundo e seus habitantes, a ponto de Hermione apagar a memória de seus pais, os fazendo a esquecer e inclusive criar novas personalidades. Se o maior perigo inicial era enfrentar o verão, um elfo-doméstico ou uma tia ditatorial, Relíquias da Morte é, acima de tudo, um filme de guerra. 


Yates, que recebeu sua dose de críticas pelas mudanças que fez dos livros e o clima de seus filmes, emprega um pragmatismo cru que casa bem com a própria evolução, vejam só, dos livros. É notório que as críticas sejam majoritariamente de um fandom mais preocupado com fidelidade que eficiência de adaptação, e as escolhas de Yates e sua equipe criativa, assim como os acréscimos e - a maioria - das omissões, se justifica, e eu, mesmo como fã do material original, talvez seja suspeito para afirmar ou não o que poderia melhorar o entendimento dos filmes se trazidos dos livros.

Penso, imediatamente, na falta de tato na morte de Edwiges, uma coruja que simboliza, em certo aspecto, o início da jornada de Harry no mundo mágico. A transição da cinzenta vida com os Dursley para o maravilhamento de Hogwarts. E nos tortuosos verões, um lembrete da vida melhor. O adeus da coruja é um borrão rápido e seco, externado sem muita emoção pelo Harry de Dan. Não há luto, somente um desrespeito pela figura da ave de rapina. Ou será que não há, simplesmente, tempo para isto? O contexto, afinal, é de guerra, assim como o momento, uma fuga alucinada pelos céus londrinos dos comensais da morte. Nem mesmo Olho-Tonto possui uma despedida notável. Rowling se destaca pela ousadia e brutalidade com que sacrificou figuras queridas, num ritmo que espanta o leitor, mas fornece um senso de emergência e verossimilhança ao momento enfrentado. Não é uma missão pequena, um dia ruim. É, repito, guerra. 

Tanto que há pouco momento de alegria, e a fantasia como magia dá lugar a magia como conveniência e pragmatismo em exercer funções, não admiração. Já faz parte daquele mundo, e ao contrário do visto no início da saga, mesmo diferente e incrível, como parte orgânica do universo, ela também pode ser mortal e triste. Com isso, a obra não afugenta seu grande charme no universo apresentado, mas evita alienar a própria história, sem também datar a trama, visto que a alegoria acaba sendo atemporal. Mais do que nunca, o design de produção e a fotografia, progressivamente descoloridas desde o logo da franquia, fazem sentido a isto. O vestido vermelho-sangue de Hermione no casamento é tão contrastante nas ruas de Londres na fuga desembestada do que a própria cerimônia, tanto que pouco vemos da festa, e somente um Harry transtornado e desesperado tentando entender um pouco mais de Dumbledore e a tarefa absurda relegada a ele - não é algo fácil, e isso precisa ser entendido, o que faz Yates.


Reconhecendo este clima bélico, e portanto, tudo que vem com ele - depressão, morte, solidão, desespero e afins, Yates e o roteirista Steve Kloves lembram a todos nós, entretanto, o verdadeiro espírito da saga, muito além de Hogwarts e qualquer elemento sobrenatural - a amizade e o amor. Hogwarts não é mostrada sequer uma vez na fita, e o que nos resta é justamente a relação latente entre o trio que acompanhamos há tanto tempo. É, afinal, a sua presença, relação e dinâmica que nos faz vidrar os olhos, tão bem construída por todo esse tempo, se tornando fascinante independente do cenário de fundo; um castelo cheio de surpresas ou uma floresta escura. Nesse aspecto, RDM.1 acaba sendo um filme legado aos três como ícones culturais, visto que carregam basicamente Todo o ritmo da narrativa, com contribuições episódicas de coadjuvantes - destaque para Dobby, tão negligenciado durante as adaptações. 

É justamente esses personagens que aprendemos a amar que dão vazão à linda e célebre frase de Dumbledore “A felicidade pode ser encontrada mesmo nas horas mais difíceis, se você se lembrar de acender a luz”. Não esquecendo, porém, o fator entretenimento e a criatividade grandiosa de Rowling, Yates não esquece, também, de enriquecer a mitologia da saga com novos conceitos e objetos, além de momentos que atenuam um pouco o clima umbroso da película, seja na ação muito bem estruturada dos Sete Potters, seja na sensível e tocante dança entre Mione e Harry, certamente um dos acréscimos mais marcantes do roteiro em relação ao livro, afinal, são mídias que podem se contribuir, não somente se apoiar, aí provando aos fãs mais xiitas o valor da autonomia audiovisual. 


O que Yates faz é destacar e estabelecer Harry Potter, mais uma vez, no panteão mais alto do cinema, renovando o alcance da série, reforçando elementos que amamos e apresentando novos, justamente um dos motivos de sua grandeza multimídia. E isso só funciona, justamente, por que antes de Yates, outros três diretores depositam sua experiência e visão pra obra, cada qual com suas particularidades, mas sempre aprimorando nossa afeição pela série. É por isso que quando Harry vê o armário sob a escada, não vemos somente uma imagem, mas um signo. Da mesma forma que nós, anos antes, o vimos receber aquela carta, e agora estamos prontos para uma última rodada, independente do que há de vir. 

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