Ataque dos Cães (2021) - Crítica
Por vezes, o protagonismo de Power of The Dog, no original, é irreconhecível pelo diluído tempo em tela de cada ator. Inclusive pela narração em off que abre o longa vindo de um suposto coadjuvante. O filme de Campion, entretanto, lida desde o início pela latente presença durante a ausência. Nos gestos e olhares. Na paisagem. Algo só percebido ao final de sua projeção, entretanto, é que todo o longa se passa pelos olhos de um personagem. O próprio ambiente servindo de materialização para seu inconsciente. E aí se define o protagonista. É o Phil, de Benedict Cumberbatch.
E por que a atribuição de um protagonista é tão importante aqui? Justamente pela onipresença dele pelo filme. Mesmo que não o vejamos. Todo o resto reage a ele, passiva e temerosamente. Na aridez inóspita da Montana pós-conquista do Oeste (ou Nova Zelândia), a habitação isolada dos Burbank, dois criadores de gado, já reflete o estado de mundo de ambos. A distribuição de força entre os dois já é expressa logo em sua primeira interação, assim como sua personalidade. Phil demonstra afetuosidade, mas intimidação a seu irmão mais novo, George (Jesse Plemons) que aceita condescendentemente a agressividade verbal lhe dirigida pelo irmão. A informação aqui é de familiaridade, mas não proximidade. Enquanto um se veste mais de acordo com o ambiente, esquálido e primitivo, o outro atravessa as planícies conduzindo o gado com um terno negro sob o sol. A ambiguidade clara é de civilização contra a selvageria. Mas implicitamente, a intenção de Campion, autora total do projeto como diretora e roteirista, é a de interpretação de papéis.
Isso para apresentar a temática principal da obra, que é a Desconstrução de Mitos. Phil não hesita em mencionar Bronco Henry a cada lembrança que lhe surja na cabeça, seja para comparar como ameaça ou recordar com saudosismo. No entanto, nunca vemos nenhuma foto do sujeito. Ele preenche o espaço através do que ensinou aos irmãos, mas principalmente por como marcou Phil. Suas palavras são de devoção, e seus atos, quando sozinho, também sugerem um sentimentalismo recatado e reprimido.
É a mesma dinâmica que busca criar com o Peter Gordon de Kodi Smit-McPhee, sempre explodindo em uma agressividade exterior, como um animal enclausurado. A psicologia ensina que a cólera externa um tumulto interno de inibição. Quando Phil busca, mesmo que de modo hostil, confabular inutilmente com seu soturno irmão, seu olhar sempre expressa a fragilidade da frustração na irmandade que se distancia. Mas ele nunca diz. George, casando-se, já deixa claro sua emancipação da apropriação de Phil. Os quartos separam-se e uma chave os bloqueia definitivamente. A recriação da relação que teve com Bronco é canalizada em Peter, uma nova busca por emotividade naquela rotina crua, ainda que o álibi seja justamente o de engrossar o afeminado Peter.
Curiosamente, é justamente Peter que reconhece a forma do cão nas montanhas que circulam a fazenda, para surpresa de Phil. Isso é o que finalmente os iguala, e admira o personagem de Cumberbatch como jamais conseguiu fazer seu irmão, que se veste e fala com polidez, mas nunca conseguiu se nivelar intelectualmente com ele - um graduado em filologia clássica, como é posteriormente revelado. Por que alguém de natureza culta e potencial cognitivo se isolou naquele vale e vive como um bruto? Tudo está nas sutilezas de Campion, a cada quadro, assim como na trilha gutural e dolorosa de Jonny Greenwood, que exala perigo e desolação a cada acorde.
Nas interações entre Phil e Peter, Campion emula o erotismo masculino de Claire Denis em Beau Travail, com homens desnudos, suados e sujos dividindo o espaço de descanso ou então de banho no rio, enquanto é justamente Phil que procura a solidão para suas raras lavagens, na suave cena em que parece dançar com um pano que roça seu corpo. Isso aliado a uma câmera que sobrevoa a paisagem num tom Malickiano de melancolia e contrastes luzidios, enquanto desmistifica o herói do oeste como o clássico High Noon, reconhecendo, porém, seu papel primordial, ainda que fantasioso, para erigir o folclore idealizado ao redor da figura do cowboy grosso e eficiente como único modo de vida e progresso naquela circunstância. Como vítima, não algoz.
Phil é o cowboy do século passado exposto à óptica do XXI: um homem retraído dentro dos próprios desejos, os expelindo na forma de brutalidade e rancor. Num gênero revivido, a tendência é a autorreferência. E Campion encontra nisto a abordagem correta para o revisionismo na mitologia do faroeste.
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