Matrix Resurrections (2021) - Crítica

Gosto muito de começar críticas comentando sobre cenas ou diálogos que evidenciam bem o espírito da obra. Em Matrix Resurrections, há várias delas, direta ou indiretamente, por vezes até saindo pela culatra do intento de Lana Wachowski. Sendo uma sequência, mas também um reboot, e para ser cronologicamente correto, a introdução do longa, ainda antes de vermos Neo, talvez seja suficiente para expressar sobre o que é Matrix 4. Nela, somos apresentados a Bugs (Jessica Henwick), que assiste a um modal, uma reprise de um momento específico e em loop, em questão o confronto de Trinity com agentes da Matrix. Estupefatos e em busca de algo, eles comentam sobre qual a utilidade de se usar velhos códigos para novos dados. Isto é, repetir interminavelmente uma mesma passagem. 

A metalinguagem, porém, atinge o ápice e trespassa a mera autorreferência no arco de Neo, ou ainda Thomas Anderson, um designer de games que trabalha para a...Warner Brothers, e ficou famoso por ter desenvolvido uma trilogia inteligente e ousada chamada de...Matrix, enquanto cenas do filme (agora jogo) e action-figures baseados nos personagens que conhecemos são exibidos em tela como símbolos daquele ícone pop. Na própria Matrix, a Matrix que conhecemos se tornou um produto de mídia trivializado e mercantilizado, tanto que vivendo crises de existência e sem conseguir concluir um novo jogo (já acima do orçamento), o chefe de Neo o informa que a Warner vai realizar uma continuação para sua criação, com ou sem ele. 


Não é algo sutil. Numa era do cinema calcada na comercialização da nostalgia, outro grande momento expositivo é quando comentam sobre como a cultura pop se apropria e torna cada memória uma arma capitalista, banalizando a experiência pessoal. Sai o sentimento, entra a algoritmização inofensiva. Mesmo que recheados de excessos, ninguém pode condenar a falta de paixão das Wachowski por suas obras, e isso vai além da sopa pop-filosófica de suas referências, e sim em como lidar com o conteúdo visualizado. 

O novo Matrix, entretanto, um produto surgido pelo luto, é um trabalho apaixonado, sim, mas também de revolta. Pode-se dizer isso do original igualmente, a partir de suas variadas interpretações, seja a metáfora intencional dos então diretores para a transição de gênero, sobre o capitalismo, a estagnação ideológica de submissão exploratória, tanto faz. Uma obra jamais fecha-se em um só caminho, e quando sai do berço, cada espectador vai ter a experiência subjetiva. Porém, entre ter a própria interpretação e desvirtuar o amálgama óbvio daquele universo, se apropriando espiritualmente do conteúdo para construir sua própria agenda, há uma diferença. Assim, nada seria mais natural do que a cólera de Lana e Lilly Wachoski, ausente aqui mas diretora dos primeiros três capítulos da franquia, quando Ivanka Trump e Elon Musk, dois expoentes da extrema-direita/libertarianismo (que moralmente não deixa de ser antro de direitistas enrustidos) se apropriando da iconofilia de Matrix. 


Isso, naturalmente, traz à mente Mad Max Fury Road mas, principalmente, por alcance de marca, o oitavo episódio de Star Wars, Os Último Jedi, que sofreu um backlash monstruoso por parte do dito fandom da saga justamente por sua posição revolucionária e iconoclasta da envelhecida e empoeirada saga, que vivia do próprio saudosismo sem se modernizar. O resultado, todos sabemos, foi a covardia colossal de Ascensão Skywalker, ou vitória para o pior lado dos nerds, ou nerdolas, aqueles que não passam de incéis frustrados e amargurados pelo próprio fracasso contra qualquer classe que lute pela igualdade. 

O que Lana faz, então, é desconstruir a própria mitologia que ajudou a fundar, desarmando qualquer viés de apropriação conservadora sobre sua propriedade intelectual, mas jamais refreando-a, e sim realizando uma receita da própria liberdade e reboot mítico, mas sem menosprezar ou esquecer o poder das lendas no imaginário popular como propulsor de manobra e mobilização. Porém, também reconhecendo como o status intocável e distante do mito é o que por si só gera o conformismo, por exemplo que levou a esquerda a perder terreno e permitir o crescimento global de ideologias execráveis, refletidos nos humanos que escolhem viver amordaçados na Matrix como combustíveis de uma elite exploradora e manipuladora. Novamente, não é nenhuma sutileza.

Se a saga Matrix, por fim, pode ser lida como uma evolução dentro dos estados do niilismo, a trilogia parece se encerrar na fase ativa da condição, superado o conflito com as máquinas (a religião daquele mundo). Durante este período, todavia, a humanidade retorna ao niilismo negativo, em que se castra em prol de uma ilusão de liberdade (temas de Reloaded e Revolutions) que nada mais é do que uma visão egocêntrica de negar o prazer pela vida em manada. O que Neo havia despertado, e agora, na sociedade contemporânea, cabe em peso a Trinity, é o desejo de superação, ou de super-homem, para se retornar à fase ativa e superar a morte de um propósito maior divino, enxergando a vida como uma tela em branco de autoafirmação. Não é a morte do indivíduo, mas a renovação constante deste junto ao coletivo. 


Matrix passa bastante longe de ser a franquia perfeita. O que o tempo reforça, porém, é a força revisionista presente em cada subtexto da agora tetralogia, ainda que calcada em prováveis pressões de estúdio e que, por vezes, enfraquece o próprio texto poderoso das diretoras, povoados de uma ação cada vez mais cansativa e menos inspirada, além da problemática orientalista, já que defender uma tribo não inibe a estereotipização de outra - claro que não deliberadamente, mas numa inocência ignorante que por si só serve de nutrição para a transcendência do Matrix de 99 para os moldes atuais, não rejeitando, mas atualizando e consertando o que tornou o filme bandeira do que pode ser visto como o contrário de sua intenção - e aí Clube da Luta diz olá. 

São situações, positiva e negativamente, perenes deste universo e que agora seguem Lana, já que afinal, Matrix é um longa narrativo e não um discurso político num comício eleitoral, pois mais do que nunca, a ação sofre não somente com a falta de ineditismo e as demandas tácitas - ou talvez verbais dentro do estúdio - para uma nova revolução tecnológica (algo que é satirizado no brainstorm para idealizar o novo game da franquia, mas contraditoriamente cobiçado durante o clímax real do longa, no que aí ele meio que se aproxima na autorreferência sabotadora de X-Men Apocalypse, que zomba do que ele mesmo é), mas a própria estafa e aparente desinteresse da cineasta em dirigi-los com paixão similar que demonstra ao interagir Neo com Trinity ou nas questões emocionais e introspectivas da obra, por mais frequentemente expositiva que ela seja em seus diálogos. 

O interesse da diretora é no que ela acredita que o mundo precisa hoje, mas talvez não o filme, já que, como aconteceu com as instáveis sequências de 2003, há uma desmoralização do próprio subtexto pela continuidade enfadonha de ação, que por si só serve de simulacro e sempre traz a lembrança inigualável do que já vimos, com ou sem o bullet-time. Por isto, mesmo que seja claramente uma rebeldia, ele se aproxima mais justamente do que zomba, que é o cenário blockbuster atual de filmes-algoritmo, ou mais do mesmo, como a repetição do início. Não no discurso, é claro, mas na forma. Mesmo no erotismo deste universo, algo que sempre foi reforçado na trilogia, como no contraste entre a realidade orgástica de Zion e a esterilização apática da Matrix, Resurrections desaponta e se mostra o mais puritano e conservador dos quatro, quase análogo à castração do MCU, contente em mostrar beijos e olhares cheios de significados entre Neo e Trinity, porém idílicos demais tanto para a situação quanto o critério interno que nos acostumaram as próprias Wachowskis. É uma paixão latente, mas controlada e sob vigília. 


É como se Lana reconhecesse o peso que Matrix teve não somente no mundo, mas nela mesma, e por mais que tente, não consiga se desvencilhar da própria armadilha que criou. Matrix, para o bem ou para o mal, se emancipou dentro da cultura pop, e Resurrection se finda como mais uma tentativa frustrada de retomar o imaginário popular do que realmente é a obra. Uma fita otimista dentro de si, mas possível justamente pelo cenário distópico que vivemos. Em que a Matrix venceu.

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